A Lei da Mordaça. O significado histórico e nosso combate
Os “representantes do povo”, numa tentativa brutal de calar todas as vozes destoantes desse circo nacional, tentam limitar a liberdade de expressão nas escolas e, por consequência, nos sindicatos e no movimento estudantil. Tais ações são sustentadas pela Organização Não Governamental (ONG) “Escola Sem Partido” (ESP) e levadas adiante por parlamentares em todos os níveis da federação.
Tais medidas não são um raio em céu azul. Numa rápida consulta à história é possível saber que em momentos onde as instituições políticas estiveram tão desmoralizadas, como é a atual situação do Brasil, os rumos da história foram mudados por aqueles que realmente a fazem. Portanto, a tentativa dessas medidas é de controlar ao máximo o acesso ao conhecimento. Assim fica mais fácil manipular a história, controlar o povo trabalhador e a juventude.
“Dormia ainda D. Quixote, quando o cura pediu à sobrinha a chave do quarto em que estavam os livros ocasionadores do prejuízo; e ela lhe a deu de muito boavontade.Entraram todos, e com eles a ama; e acharam mais de cem grossos e grandes volumes, bem encadernados, e outros pequenos. A ama, assim que deu com os olhos neles, saiu muito à pressa do aposento, e voltou logo com uma tigela de água-benta e um hissope, e disse: — Tome Vossa Mercê, senhor licenciado, regue esta casa toda com água-benta, não ande por aí algum encantador, dos muitos que moram por estes livros, e nos encante a nós, em troca do que nós lhes queremos fazer a eles desterrando-os do mundo. Riu-se da simplicidade da ama o licenciado, e disse para o barbeiro que lhe fosse dando os livros um a um, para ver de que tratavam, pois alguns poderia haver que não merecessem castigo de fogo. — Nada, nada — disse a sobrinha; — não se deve perdoar a nenhum; todos concorreram para o mal. O melhor será atirá-los todos juntos pelas janelas ao pátio, empilhá-los em meda, e pegar-lhes fogo; e se não, carregaremos com eles para mais longito da casa, para nos não vir molestar o fumo incomodará. ”
O trecho acima faz parte da obra D. Quixote publicada em 1605. Já nessa época o escritor Cervantes, homem muito à frente de seu tempo no olhar sobre o mundo, já satirizava a ideia que foi mantida durante séculos sobre a censura à informação. Mais de quatro séculos se passaram, mas as classes dominantes continuam querendo queimar nossos livros e apagar nossa história.
No mês de abril desvendou-se o véu que circundava as instituições políticas brasileiras. De um lado vimos o Congresso Nacional podre, com um discurso inflamado, hipócrita, de que representam o povo, por outro, o aparecimento de projetos de leis que retiram direitos concretos dos trabalhadores, como é o caso da liberdade de expressão.
Os “representantes do povo”, numa tentativa brutal de calar todas as vozes destoantes desse circo nacional, tentam limitar a liberdade de expressão nas escolas e, por consequência, nos sindicatos e no movimento estudantil. Tais ações são sustentadas pela Organização Não Governamental (ONG) “Escola Sem Partido” (ESP) e levadas adiante por parlamentares em todos os níveis da federação. Calar as vozes e apagar a história é o objetivo central de projetos de lei como o 8.242/2016 da cidade de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, apelidado de Lei da Mordaça. Um projeto com o mesmo teor foi aprovado em Alagoas. Curioso observar que Alagoas tem o maior índice de analfabetismo do país e a preocupação dos parlamentares é em limitar a liberdade de expressão dos professores.
Tais medidas não são um raio em céu azul. Numa rápida consulta à história é possível saber que em momentos onde as instituições políticas estiveram tão desmoralizadas, como é a atual situação do Brasil, os rumos da história foram mudados por aqueles que realmente a fazem. Portanto, a tentativa dessas medidas é de controlar ao máximo o acesso ao conhecimento. Assim fica mais fácil manipular a história, controlar o povo trabalhador e a juventude.
A aprovação dessas leis é um retrocesso de centenas de anos, é a privação ao acesso à história da humanidade, é a tentativa de condenar toda uma geração. Por isso, é preciso entender o significado dessas ações e combatê-las.
Um pouco de história
O sistema educacional brasileiro é o que restou da educação francesa. Em 1881 e 1882 a Assembleia Nacional francesa aprovava as leis republicanas que iriam dar fundamento a grande parte dos sistemas educacionais republicanos pelo mundo. Esse sistema estava fundamentado em três pilares, a gratuidade, a obrigatoriedade e a laicidade.
Com olhos na tão recente Comuna de Paris (1871), os parlamentares franceses foram obrigados a garantir que as classes desprovidas tivessem acesso ao conhecimento. A ideia de que outro mundo era possível estava latente nos jovens e trabalhadores. Não havia condições de esconder que o acesso a todos era realizável. Diante disso, a França abre caminho ao modelo republicano de educação que conhecemos hoje.
O Brasil, de forma muito atrasada, também registrou esses três pilares na recente democratização do país, na Constituição de 1988. Também ressaltou, no artigo 206, a “liberdade de aprender, ensinar e pesquisar” como um dos nossos fundamentos.
No entanto, antes de se solidificar nossa história já sofreu duros golpes. Nem bem a nova Constituição era aprovada, a grande burguesia internacional já mirava a educação brasileira no intuito de torná-la um filé de lucro aos empresários do setor. Assim, o final do século 20 e a primeira década do século 21 foram marcados por um aumento nunca visto do ensino particular, pelo sucateamento total das escolas públicas, por achatamento dos salários e pela destruição das condições de trabalho dos professores de norte a sul. Ou seja, houve a precarização total do público em benefício do privado.
A resistência
Tanto os professores como os estudantes não se deram por vencidos e são hoje uma das maiores e mais combativas forças do país.
Os professores e os jovens têm uma história de luta riquíssima. Apenas nas últimas décadas foram ponto fundamental nas manifestações que pediam eleições diretas, Fora Collor, Piso Nacional do Magistério, obrigatoriedade do Ensino Médio, entre outras centenas. Em 2015 e 2016 já são muitos os registros. Vimos uma das maiores greves da história no estado do Paraná, uma vitória exemplar dos estudantes de São Paulo com a ocupação de escolas e, neste momento, vemos o levante dos professores e da juventude nas escolas do Rio de Janeiro.
Essa força causa medo nas instituições estabelecidas. O Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores reagem, trazendo à tona a mais cruel de suas faces com a tentativa de cercear a liberdade de expressão, calar os oprimidos e, acima de tudo, apagar a história.
Com uma variação linguística para todos os gostos, o objetivo central dos projetos que tramitam em diversos estados e municípios é proibir que professores e estudantes tenham acesso à história. Querem apagar as grandes lutas feitas pela juventude e pelos professores em todo o mundo. Isso é o que as classes dominantes mais temem.
Os projetos
Os projetos que tramitam nas Câmaras Municipais, Assembleias Estaduais e Congresso Nacional têm como base a censura. Seus textos variam e utilizam frases como: “o professor deve ser imparcial”, “o professor não pode discutir religião” e “o professor não pode ter tendência partidária”.
O projeto modelo apresentado pela ESP, no Artigo 3º explica quais são os deveres do professor:
III – [o professor] não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;
VI – [o professor] não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula.
A ESP quer calar o professor em sala, ao exigir essa “neutralidade”, e quer calar qualquer um que queira se manifestar no mesmo espaço. Por exemplo, o grêmio estudantil da escola ou sindicato dos professores.
Afinal, de que forma é possível ensinar história, literatura, biologia, geografia e mesmo as ciências exatas sem apontar os erros, os acertos, os absurdos, as diferenças em cada época vivida? O que esses parlamentares, que possuem partidos e ideologias, querem com esses projetos? Essa é uma atrocidade e um retrocesso. Deve ser combatida com força, organização e luta.
Vejamos alguns exemplos do que significa “imparcialidade” com o conhecimento e o que os professores teriam que evitar dizer:
- – Que a ditadura militar no Brasil foi orquestrada pelo imperialismo norte-americano e matou milhares de jovens e trabalhadores.
- – Que na Idade Média quem lia e discordava dos algozes era queimado em praça pública pela Igreja e pela coroa.
- – Que na Grécia antiga havia outras crenças e outros deuses.
- – Que os índios habitam o Brasil há milênios e não são grandes proprietários de terras como algumas 100 famílias de latifundiários do país.
- – Que a escravidão já foi lei e que o Brasil foi o último país a acabar com essa barbárie.
- – Que o Nazismo foi um dos maiores massacres que a humanidade já viu.
- – Que Darwin existiu.
- – Que o mapa do continente africano tem linhas retas, pois foi dividido artificialmente por países que o exploram até hoje.
- – Que a história da arte e da literatura está intrinsecamente ligada às mudanças econômicas, políticas e sociais da humanidade.
- – Que a Igreja obrigou Galileu a negar a teoria de que a Terra não era o centro do universo.
- – Que os jovens e trabalhadores têm força para derrubar o Congresso Nacional.
- – Que os maiores avanços de nossos direitos vêm de grandes revoluções.
- – Que o direito de escolha sexual e religiosa é privado e não diz respeito aos governantes.
Que os governos e parlamentos atuais não nos representam e que nós podemos mudar o sistema. Talvez, eles tenham razão, é preciso limitar o conhecimento dos jovens. Do contrário, os dias dos parlamentares, bem como dos burgueses que os financiam, estão contados.
O que é a ONG Escola Sem Partido?
A ESP é a ONG que impulsiona a Lei da Mordaça no país. Ela primeiramente criou um anteprojeto de lei, em versões para municípios e estados (veja aqui). Esse anteprojeto foi apresentado nas Assembleias Legislativas do Rio de Janeiro, Goiás, São Paulo, Espírito Santo, Ceará, Distrito Federal e Rio Grande do Sul e nas Câmaras de Vereadores de Joinville (SC), Curitiba (PR), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Toledo (PR), Vitória da Conquista (BA), Cachoeiro de Itapemirim (ES), Foz do Iguaçu (PR) e Santa Cruz do Monte Castelo (PR). Sendo que nesta última cidade e no estado de Alagoas o projeto já foi aprovado.
Em sua página web, a ESP afirma se inspirar no “trabalho bem sucedido” do No Indoctrination, um site criado pela americana Luann Wright ao descobri que o seu filho teria que escrever artigos sobre o racismo de brancos contra os negros. Wright acreditava que o professor do seu filho deveria tratar apenas de ensinar ele a escrever e não se aproveitar de sua posição para tratar de crenças pessoais em sala de aula. A solução encontrada por Wright foi fundar uma espécie de fórum, noindoctrination.org, para permitir que denúncias de pessoas que se sentissem afetadas pelas crenças de seus professores pudessem ser realizadas nesse espaço.
A ESP vai além. A ONG se apoia na ideia de que a esquerda se beneficia do seu espaço nas salas de aula para impor suas ideologias sobre os estudantes que são “audiência cativa” para esses professores. Para eles, essas ideias ameaçam destruir os “valores” da sociedade brasileira. O coordenador da ESP, Miguel Nagib, acredita que os professores não podem ter liberdade de expressão no exercício de sua função e chega ao absurdo de afirmar que os professores que exprimem suas ideias deveriam ser considerados criminosos.
Nagib conta com o apoio dos tipos mais atrasados da política brasileira. Por exemplo, o deputado federal Rogério Marinho (PSDB-RN), que apresentou o projeto de lei 1.411/2015, propondo “a criminalização do assédio ideológico”. O PL prevê penas de até um ano de prisão para professores que recriminarem estudantes por questões ideológicas. Outro deputado, Izalci Ferreira, também do PSDB, apresentou o PL 867/2015, que foi apensado ao PL 7.180/2014 e é uma espécie de versão nacional da Lei da Mordaça. No Rio Grande Sul, o anteprojeto foi apresentado pelo deputado estadual do PP, Marcel Van Hattem, fundador Movimento Brasil Livre.
Nagibi, Wright, Marinho, Hattem e Izalci são tão hipócritas que não se consideram “ideólogos”.
Os livros didáticos também são alvos da ESP por “espalharem as ideias comunistas” nas escolas, como se tudo fizesse parte de uma grande conspiração vermelha, que envolve, inclusive, o governo venezuelano.
Para a ESP, a esquerda é quem mais se beneficia da suposta “ideologização” imposta pelos professores que se aproveitam da sua posição para “fazer a cabeça” dos estudantes. Quando, na verdade, serão as classes dominantes as beneficiadas pelo silencio do professor, grêmios e sindicatos em sala. A Lei da Mordaça não quer evitar uma possível ideologização, ela quer evitar que a ideologia dominante seja questionada.
A ONG acusa um professor do Paraná, que fez greve no ano passado, foi violentamente reprimido pela Polícia Militar a mando de Beto Richa e, depois, fez uma prova onde manifestava posição contrária ao governador do PMDB. Porém, não faz uma crítica ao governo Richa, que atacava a previdência dos professores naquele mesmo ano e que usou a polícia para calar os mesmos.
A audiência pública fundamentada por Olavo de Carvalho
No dia 24 de março de 2015, a pedido do deputado Izalci Ferreira, uma audiência pública foi realizada pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados com o tema: Doutrinação Política e Ideológica nas Escolas.
Participaram da audiência: Manuel Palácios (Secretário de Educação Básica do Ministério da Educação), Celso da Costa Franches (Associação Nacional dos Centros Universitários – Anaceu), Braulio Porto De Matos (professor de sociologia do Departamento de Educação da Universidade de Brasília – UnB), Luiz Lopes Diniz Filho (professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná – UFPR), professora Ana Caroline Campagnolo, Trajano Sousa De Melo (promotor de Justiça de Defesa do Consumidor, do Ministério Público), Amábile Pácios (presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares – Fenep) e Miguel Nagib (coordenador do Movimento Escola Sem Partido).
Não é difícil de imaginar o nível desse debate, que buscou apenas dar visibilidade ao projeto de Nagib. É preciso entender as ideias que fundamentam esse projeto. Os presentes na audiência podem servir para ilustrá-las.
A presidente da Fenep, Amábile Pácios, representa a iniciativa privada e teme que qualquer professor tenha ideias de esquerda, que se filie ao sindicato etc. O professor de sociologia da UnB, Bráulio Porto de Matos, é amigo e cita Olavo de Carvalho para dar “peso” a seus argumentos. A “educadora” Ana Caroline Campagnolo tem seu discurso exaltado, hoje, por Jair Bolsonaro e Rodrigo Constantino.
Todos eles confirmam que as ideias marxistas são transmitidas nas salas de aula e precisam ser combatidas. Com exceção de Manuel Palácios, todos usam o reacionário Olavo de Carvalho para sustentar seus argumentos e/ou fazem citações do “filósofo”.
Além disso, Luiz Lopes, Bráulio Porto, Ana Campagnolo e Nagib, escrevem artigos, possuem espaço no Instituto Millenium, que é bancado pela Gerdau, Globo, Abril, Banco Pactual, Banco BBM, Banco CSFB, Grupo Ultra, Petropar, Odebrecht, JP Morgan, etc., com um fundo gerido pelo ex-ministro do governo FHC, Armínio Fraga.
Devemos combater a Escola Sem Partido
A Escola Sem Partido possuiu uma ideologia, um partido, ela tem lado. Não quer proteger nossos filhos. Ela é formada e sustentada pelos elementos mais podres que existem na nossa sociedade. Seus defensores são lixos humanos que tremem diante da ideia de uma revolução socialista. Estão dispostos a calar nossos professores, a impedir que o estudante tenha acesso ao conhecimento pleno, a qualquer coisa para evitar que a maioria desperte e lute contra a minoria.
Esse é o centro da questão, a função da escola é socializar o conhecimento. Proibir leituras, proibir a livre discussão é retroceder à Idade Média, à inquisição.
Não recuaremos um milímetro. Defendemos uma escola pública, gratuita e laica, em que professores e um estudantee tenham liberdade de expressão e o direito à divergência. Que em cada lugar onde esses atrasados tentem cercear nossos direitos estejamos em pé e prontos para derrotá-los.
Convocamos todos os professores, jovens, pais a engajarem-se na luta por uma escola livre, onde o conhecimento seja uma busca permanente, onde nenhuma pessoa será discriminada por sua opção ideológica, religiosa ou sexual. Onde possamos divergir e aprender uns com os outros e com a história. Por uma escola onde possamos dizer que este mundo de opressão e exploração precisa ser transformado, onde o conhecimento não seja visto como um ato de rebeldia, mas, sim, como um direito de todos.