Feminismo segundo a perspectiva marxista (Parte 2)

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Este texto busca compreender os movimentos de resistência da mulher, ao longo de suas lutas históricas, que se expressaram e se expressam de diversas maneiras, sendo o termo feminismo uma designação comum para eles.

Leia a Parte 1 e a Parte 3

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CAPITALISMO E A PRIMEIRA ONDA DO FEMINISMO 

O capitalismo industrial introduziu o trabalho assalariado, em que o ganho individual de renda para cada trabalhador flexibiliza sua relação com a propriedade, não havendo mais vínculo de sobrevivência, como era o caso da terra feudal, de onde tirava sua subsistência.

O trabalho assalariado consiste na venda de força de trabalho por salários, os quais muitas vezes não são suficientes nem mesmo para a subsistência. Neste contexto, a família urbana deixa de ser a unidade de produção, a qual passa a ser a indústria, e passa a ser a unidade de consumo e unidade reprodutiva. E, principalmente, permanece como instituição que garante a sobrevivência da classe trabalhadora a partir do salário de um ou mais assalariados e do trabalho doméstico privado exercido pela mulher, que garante a sobrevivência dos assalariados, desempregados, idosos, crianças e deficientes.

Como foi explicado, se em um primeiro momento a mulher permaneceu na esfera do lar, com o desenvolvimento de máquinas que podem ser utilizadas por mulheres e crianças, elas adentram as indústrias, principalmente no setor têxtil. A sua inserção na indústria capitalista foi um passo significativo para sua maior independência, pois poderia receber uma renda própria a partir do seu trabalho. Apesar de intensificar a exploração feminina, Marx defendeu esta inserção à revelia de parte significativa do movimento operário considerado “antifeminista”, o qual, diante do rebaixamento geral das condições de vida da classe trabalhadora, exigia um “salário familiar” mais alto para o chefe da família e a manutenção da mulher restrita ao lar. Entretanto, a luta deveria ser pelas conquistas de toda a classe, contra os baixos salários e pela busca de emancipação econômica e social da mulher.

De fato, a entrada da mulher na produção não apenas resultou da necessidade dos capitalistas de aumentar o acúmulo de capital, como foi também uma forma de aumentar proporcionalmente a mais valia extraída da classe trabalhadora.  No capítulo VI de seu livro intitulado “Os diferentes ramos da indústria”, Engels argumenta como, com a introdução das máquinas nas fábricas, o trabalho operário masculino adulto foi sendo eliminado e substituído pelo trabalho de mulheres e crianças. Segundo Engels, a introdução das máquinas, tanto no ramo da fiação quanto da tecelagem, determinou um trabalho diferente, onde o exigido eram dedos ágeis e quase nenhuma força física, o que qualificava o trabalho de mulheres e crianças e desqualificava o trabalho de homens.

Esta modificação foi de grande interesse à classe capitalista, pois eram pagos menores salários a mulheres e crianças e aumentava-se a massa de trabalhadores disponíveis a vender sua força de trabalho a qualquer custo. Mas não eram somente estas as vantagens para os capitalistas. Marx coloca que, anteriormente,

O valor da força de trabalho era determinado não pelo tempo de trabalho necessário para manter individualmente o trabalhador adulto, mas pelo necessário à sua manutenção e à de sua família. Lançando a máquina todos os membros da família do trabalhador no mercado de trabalho, reparte ela o valor da força de trabalho do homem adulto pela família inteira. Assim, desvaloriza a força de trabalho do adulto. A compra, por exemplo, de quatro forças de trabalho componentes de uma família talvez custe mais do que a aquisição, anteriormente, da força de trabalho do chefe da família, mas, em compensação, obtêm-se quatro jornadas de trabalho em lugar de uma e o preço da força de trabalho cai na proporção em que o trabalho excedente dos quatro ultrapassa o trabalho excedente de um. Quatro têm de fornecer ao capital não só trabalho, mas também trabalho excedente, a fim de que uma família possa viver. Desse modo, a máquina, ao aumentar o campo específico de exploração do capital, o material humano, amplia, ao mesmo tempo, o grau de (sic) exploração. (MARX, K. O Capital)

A partir dos relatos de Engels verificamos o alto grau de exploração aos quais os trabalhadores eram submetidos. Neste contexto, quando o desenvolvimento das forças produtivas ainda não possibilitava a extração da mais-valia relativa, os capitalistas aumentavam seu capital através da mais-valia absoluta, submetendo os trabalhadores a longas jornadas de trabalho que chegavam a durar 16, 18 horas diárias. As crianças não estavam fora desta condição.

Engels salienta que a retirada da mulher do seio familiar trouxe várias consequências à formação das crianças. Uma delas foi o aumento da mortalidade infantil. O autor relata que “as mulheres voltam à fábrica muitas vezes três ou quatro dias após o parto, deixando, bem entendido, o recém-nascido em casa. Na hora das refeições correm para casa para amamentar a criança e comer um pouco. Mas pode-se facilmente imaginar em que condições se efetua este aleitamento!”. Também se intensificou o uso de narcóticos para manter as crianças sossegadas na ausência dos pais que estavam trabalhando.

No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels explicam: “a grande indústria destrói todos os laços familiares do proletário e transforma as crianças em simples objetos de comércio, em simples instrumentos de trabalho”.

A competição por postos de trabalho e a maior ameaça de desemprego também exerceram sucateamento das condições de trabalho. A mulher, especificamente, além de enfrentar duplas jornadas de trabalho, sofria com a falta de qualificação e maior desemprego. E, por conseguinte, estava afastada dos assuntos públicos e políticos. Se, por um lado, possuía maior independência econômica, por outro lado não era suficiente para sustentar o lar e seus filhos sem o salário do homem, do qual toda a família dependia.

Estas contradições foram a premissa do surgimento da “questão da mulher”. Foi também na sociedade moderna industrial em que houve o surgimento do movimento de mulheres contra a exploração e a opressão. Apesar de ambos existirem desde o surgimento da propriedade privada, foi o capitalismo industrial que suscitou contradições estruturais no papel social e produtivo da mulher.

Segundo Wendy Goldman:

No âmbito teórico, Zetkin ampliou as análises iniciais de Engels e Bebel. Focando a transição da economia agrária para a industrial, Zetkin explorou as mudanças nos papéis das mulheres com a expansão da produção de mercadorias. Argumentava que, em uma sociedade pré-capitalista, as mulheres eram “uma força produtiva extraordinária”, que produzia todos ou quase todos os bens necessários para a família. A transição para a produção mecânica e a indústria em grande escala tornou a atividade econômica da mulher dentro da família supérflua, uma vez que a indústria moderna produz bens de maneira mais rápida e barata. À medida que a produção de bens dentro do lar se tornou crescentemente desnecessária, a atividade doméstica das mulheres perdeu sua função e significado. Isso criou uma nova contradição entre a necessidade das mulheres em participar da vida pública e sua impossibilidade legal de fazê-lo. A própria existência de uma “questão da mulher” encontrava sua premissa nessa contradição.

Para Zetkin, o movimento das mulheres seria inconcebível em uma sociedade camponesa. Somente poderia surgir “dentro dos tipos de sociedade que são os frutos do modo de produção moderno”. Concordando com Engels, argumentava que a opressão às mulheres era resultado do desenvolvimento da propriedade privada, mas agregou que o movimento das mulheres contra essa opressão somente poderia emergir das condições capitalistas de produção, que empurravam as mulheres para a esfera pública ao mesmo tempo que impunham diversas restrições sobre sua capacidade de agir dentro dela. Zetkin, assim, usou o quadro marxista para explicar a própria gênese da ‘questão da mulher’ no século XIX. (GOLDMAN, W. Mulher, Estado e Revolução)

Wendy Goldman e os trabalhos de Zetkin mostraram como houve mudanças nas relações sociais e na concepção do papel da mulher na sociedade industrial. Primeiro a família perde a função produtiva econômica a partir da indústria, o que tira a centralidade da mulher na antiga economia doméstica, papel que Zetkin chamou de “força produtiva extraordinária”. Portanto, para participar da vida produtiva, a mulher foi obrigada a sair do lar para trabalhar, tornando-se também assalariada. Neste ponto, a mulher tem seu papel econômico modificado com a industrialização. Entretanto, seu papel social de doméstica e dona de casa permaneceu, o que consiste em mais uma contradição na sua participação na sociedade industrializada e evidencia como o Estado burguês depende da família para a manutenção da sociedade, uma vez que não faz parte de seu projeto social garantir a criação socializada da criança e garantir refeitórios e lavanderias públicos, gratuitos e para todos. Segundo, a família permanece monogâmica, com função reprodutiva e de sobrevivência da classe trabalhadora, mas, como novidade, torna-se também unidade de consumo.

O que permanece inalterado no capitalismo industrial é a sociedade de classes, a propriedade privada, a família monogâmica e o patriarcalismo, responsáveis pela manutenção do aprisionamento da mulher. Entretanto, são as mudanças em aspectos das relações sociais e do papel econômico da mulher que geram mais contradição e fazem nascer a “questão da mulher”.

As revolucionárias Clara Zetkin e Alexandra Kollontai contribuíram enormemente para o marxismo quando analisaram que os laços tradicionais da família foram desmantelados pelo capitalismo e surgiram novas relações sociais dentro da família trabalhadora, desenvolvendo, entretanto, outras formas de dependência mútua. Não mais na produção, mas na complementação da renda e na prestação do serviço doméstico. O que mantinha a supremacia do homem sobre a mulher, o qual recebia salários significativamente maiores e possuía maior estabilidade no emprego. Ainda mantinha-se a ideologia dominante machista que, por milênios, considera a mulher inferior em todos os aspectos e a diminui em suas relações e oportunidades.

A contradição entre os avanços da inserção da mulher no mundo produtivo e a intensificação de sua exploração, aliada à exploração de classe, evidencia a importância do Estado e das condições sociais que estão cercando a luta pelos direitos das mulheres, determinantes para se evitar o empobrecimento geral da classe e fomentar a verdadeira emancipação feminina. A emancipação da mulher recebeu atenção especial dos bolcheviques durante a Revolução Russa, e que será descrita no decorrer do presente texto.

A mulher pobre, além de oprimida no lar, é também explorada pelo capitalista. Ao mesmo tempo, a mulher burguesa, mesmo que em situação privilegiada e de exploradora, ainda se vê presa a uma ideologia arcaica resistente a conferir direitos às mulheres. Por isso, trabalhadoras e burguesas aferraram-se aos ideais da Revolução Francesa de igualdade, liberdade e fraternidade e nos demais direitos democráticos prometidos pela nova ordem, na esperança de que se estendessem também às mulheres.

Diante da dupla exploração da mulher na Idade Moderna devido ao desenvolvimento da indústria e da contradição entre seu papel social e econômico, iniciam-se reivindicações pelos seus direitos e movimentos organizados. Aponta-se o socialista utópico e filósofo francês Charles Fourier como o criador da palavra “feminismo”, em 1837 (Goldstein, 1982), e os termos “feminismo” e “feminista” apareceram pela primeira vez em países da Europa e nos Estados Unidos da América entre 1872 e 1910. Segundo o Oxford English Dictionary, os termos surgem pela primeira vez em 1895 e 1894, respectivamente.

No período anterior ao século XIX, mulheres agiram ativamente em defesa de seu gênero. Em “Feminism: The Essential Historical Writings”, Mirian Schneir organiza uma coletânea de textos, documentos, discursos, cartas, livros e obras literárias de mulheres ativistas, como Christine de Pizan, século XV; Modesta di Pozzo di Forzi, século XVI; Marie Le Jars de Gournay, Anne Bradstreet e François Paullain de la Barre, século XVII.

(http://www.amazon.com/Feminism-The-Essential-Historical-Writings/dp/0679…).

Em sua obra “Not My Mother’s Sister – Generational Conflict and Third Wave Feminism”, Astrid Henry explica como mulheres ativistas, na década de 1960, começaram a pensar a cronologia do movimento feminista. Marsha Lear, em 1968, realiza a metáfora de “onda” ligada ao movimento ao escrever para a The New York Times Magazine. Ao utilizar o termo “primeira onda” do feminismo para designar o período de lutas pelas demandas femininas compreendido entre o século XIX e início do XX, situa-se como ativista da “segunda onda” do feminismo, que compreende as décadas de 1960 a 1980 e que possui outras demandas, diferentes das lutas da primeira onda, como a igualdade social para as mulheres e não apenas legal.

Durante o período da independência dos Estados Unidos da América surgiram movimentos pelos direitos femininos e revolucionárias como Abigail Adams e Judith Sargent Murray questionaram o que a Declaração de Independência significaria para as mulheres. Neste contexto, realizou-se a Convenção de Seneca Falls, em 1848, no estado de Nova Iorque, quando foi feita a declaração a respeito dos direitos das mulheres nos EUA. Este foi um dos eventos considerados como germe do movimento feminista, organizado por Lucretia Mott e Elizabeth Cady Stanton. Contestou-se a respeito dos direitos parlamentares, eleitorais, profissionais e o direito de organizar-se em movimentos ou organizações políticas.

A nomeação das ondas caracteriza “duas eras imaginadas do movimento feminista”, a partir de uma compreensão histórica possível somente no final do século XX, que pode realizar a análise dos fluxos e refluxos do movimento no século passado. Por isso, segundo Henry, a metáfora da onda se tornou tão arraigada no discurso feminista. Segundo a autora, a nomeação do movimento “legitimou o feminismo como uma séria e contínua luta política com uma história, enquanto, simultaneamente, concedeu à segunda onda um meio pelo qual se postulasse ela mesma como a vanguarda” (pág. 58, tradução livre) do novo momento político do movimento como um todo.

(https://books.google.com.br/books?id=W4U4Ss1OZGoC&pg=PA58&hl=pt-BR#v=one…)

Entretanto, havia divergências entre feministas sobre o que consiste exatamente a primeira onda, se um legado histórico do qual a segunda onda é continuidade ou se um movimento puramente burguês e reformista que causava distanciamento das feministas recentes. Marilyn Webb, em 1968, foi uma das feministas radicais que considerava a primeira onda como irrelevante. E Germaine Greer, em sua obra “The Female Eunuch”, de 1971, sugere que o termo “segunda onda” compreende a noção de “novo” e revolucionário, contra o que ela considera a “primeira onda”, de forma generalizada, algo antigo e reformista.

Sobre a relação entre o “novo” e o “antigo” movimento pelos direitos femininos, Shulamith Firestone, em 1968, cumpriu um papel importante em retomar o legado histórico das lutas de mulheres do começo do século XIX que, longe de se restringirem a mulheres burguesas sentadas em seus escritórios, eram verdadeiramente revolucionárias, sendo que este período foi marcado por movimentos ardentes com participação em peso de mulheres trabalhadoras que bradavam pelo fim da ordem existente. Como explica Henry, as feministas que desprezam a primeira onda, e que se autointitulam radicais, utilizam as deficiências do movimento sufragista para caracterizar todo o período como contrarrevolucionário.

A luta pelo sufrágio feminino foi em grande parte a primeira luta por direitos das mulheres nos países que haviam passado pela revolução industrial nos séculos XIX e XX, como Reino Unido, Canadá, Países Baixos e Estados Unidos da América. No Reino Unido, havia uma contradição entre a atuação econômica da mulher na esfera pública, em um tempo em que assumia responsabilidades na sociedade, e a impossibilidade de votarem devido a uma suposta incapacidade de compreender o parlamento britânico. Isto provocou o surgimento das “suffragettes”, termo pejorativo cunhado às ativistas do século XIX. O movimento iniciou com a fundação da União Nacional pelo Sufrágio Feminino, em 1897, pela educadora Millicent Fawcett. As feministas associadas à União Social e Política conferiram um tom mais incisivo nas reivindicações com o movimento fundado por Emmeline Punkhurst, o qual tomou as ruas e passou a ser amplamente conhecido. O movimento alcançou a conquista do voto feminino no Reino Unido, com a aprovação do Representation of the People Act em 1918.

Filha de Emmeline, Sylvia participou ativamente do movimento, opondo-se ao método anarquista. Realizou agitações na porta das fábricas para se aproximar e dialogar com as trabalhadoras. Mais tarde foi uma das fundadoras do Partido Comunista Britânico. A posição de classe tomada por Sylvia a diferencia das demais líderes da família, Emmeline e sua irmã Christabel, as quais mudam drasticamente de posição no início da Primeira Guerra Mundial, passando a defender o lema “Rei, Pátria e Liberdade” no seu jornal, que tem o nome alterado de “Voto para as Mulheres” para “Britannia”. Um exemplo de traição da causa das mulheres e que expressa uma face burguesa do movimento feminista.

Um caminho verdadeiramente consequente para o movimento dos direitos das mulheres, e que poderia significar resistência organizada contra a forte repressão por que passaram as suffragettes, teria sido o estabelecimento de laços com o movimento operário, que na época travava intensa luta de classe. Esta foi uma época de ascensão da luta de classes na Grã-Bretanha, com greves em massa de estivadores e trabalhadores dos transportes, inclusive greves de massas de mulheres trabalhadoras, como a ocorrida em Bermondsey, no sul de Londres, com 15 mil trabalhadoras reunidas no Southwark Park em defesa do aumento do salário e direito ao voto.

Gradualmente se foi conquistando o direito ao voto feminino em outros países. Assim como nos países coloniais, o Brasil alcançou essa conquista tardiamente, a partir do decreto nº21.076 de 1932, assinado pelo presidente Getúlio Vargas. Bertha Lutz foi uma bióloga ativista responsável por articulações políticas e movimentos que resultaram nesta conquista.

Esta conquista vai além do benefício apenas da mulher, mas representa um avanço democrático para toda a classe de explorados. Uma vez que não constitui um fim em si mesmo, o sufrágio feminino é uma reivindicação transitória necessária para maior conscientização e expressão da classe trabalhadora, mesmo que o campo eleitoral burguês produza um reflexo distorcido da situação política real. Enquanto a maior parte da sociedade estiver participando e discutindo sobre os processos eleitorais, é dever dos marxistas participarem do processo munidos de um programa de classe revolucionário e denunciando a parcialidade do direito e do parlamento burguês a favor dos exploradores. O parlamento burguês deve ser utilizado como palanque para que se demonstre à classe a necessidade de organização, com expressão em um partido operário revolucionário independente. 

 Lênin explica em “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” a importância de disputar as eleições burguesas: “enquanto não tiverdes força para dissolver o parlamento burguês e qualquer outra organização reacionária, vossa obrigação é atuar no seio dessas instituições, precisamente porque ainda há nelas operários embrutecidos pelo clero e pela vida nos rincões mais afastados do campo.”

A respeito da caracterização póstuma do que foi a “primeira onda do feminismo”, os esforços de Firestone vieram a acrescentar a importância das lutas empreendidas pelo direito ao voto, mesmo que existissem feministas no movimento sufragista que estivessem primando pelo direito de deter propriedade enquanto mulher, uma reivindicação própria da classe burguesa. Apesar disso, o século XIX e início do XX também presenciou lutas insurrecionais de mulheres trabalhadoras por melhores condições de trabalho, pelo direito ao pão, fechando fábricas, quebrando máquinas. Foram momentos de intensa efervescência na luta de classes, com traços revolucionários, e que compuseram a primeira grande onda de reivindicações pelos direitos das mulheres.

É importante precisar que as manifestações tipicamente da classe trabalhadora contaram com a violenta oposição das mulheres burguesas e também com a cisão do movimento, como foi o caso das mulheres da família inglesa Punkhurst, o que evidencia o caráter de classe das reivindicações. Logo, já a história da primeira onda, e até mesmo as divergências posteriores quanto a sua caracterização, evidencia como a luta de mulheres, independentemente da classe social, possui limites estreitos e como as reivindicações mais sentidas e bravamente levadas pela maioria das mulheres, as quais compõem a classe trabalhadora, provocaram, ao longo da história, um racha nos movimentos feministas que se abrem, invariavelmente, na fenda que separa uma classe da outra, cada qual com seus interesses e reivindicações.

Portanto, o movimento unificado das mulheres, independentemente da posição social, passou por algumas provas na história. A primeira delas durante o desenvolvimento da Revolução Francesa, em 1789. Se inicialmente houve união das mulheres pelo propósito de democracia para todos, o desenvolvimento da revolução, após conquista do poder pela burguesia, dividiu as mulheres entre as que primavam pelo estabelecimento da ordem nos marcos burgueses e da sociedade de classes e as que queriam continuar a revolução a caminho da total libertação dos oprimidos.  

Alan Woods, no texto “Marxismo versus Feminismo: a luta de classes e a emancipação da mulher” (2013) ilustra essas divisões:

(…) a própria Revolução caracterizou-se por uma luta constante de partidos e tendências em que a tendência mais radical constantemente superava e substituía as tendências mais moderadas, até a Revolução finalmente exaurir seu potencial e começar a enfraquecer em uma espiral descendente que levou ao bonapartismo e Waterloo. Essa briga partidária no fundo refletia a luta entre classes diferentes. A facção girondina representava aquela parte da burguesia que temia as massas e batalhava por um acordo com o rei. Estes antagonismos de classe – que assumiram uma forma particularmente amarga na Revolução Francesa – também afetaram a questão da mulher de uma maneira fundamental.

As ativistas girondinas – algumas das quais tinham posições muito avançadas na questão formal dos direitos da mulher – colocaram a questão de uma maneira diferente das mulheres sans culotte (…). As mulheres das classes pobres de Paris foram, sem dúvida, motivadas por um forte espírito revolucionário, consciência de classe e um inesgotável ódio aos ricos. As mulheres girondinas, oriundas da classe média privilegiada e de famílias burguesas, não tinham os mesmos interesses imediatos das mulheres dos bairros pobres de Paris.

Os girondinos aprovaram uma lei sobre o divórcio que foi, sem dúvida, um avanço para as mulheres. Mas as mulheres girondinas colocaram uma forte ênfase nos direitos de propriedade das mulheres. Na época da Revolução Francesa, tal demanda não era de forma alguma uma questão candente para a maioria das mulheres, pela simples razão de que nem elas nem seus maridos possuíam qualquer propriedade. As mulheres sans culotte, que desempenharam um papel tão proeminente na Revolução, eram contrárias ao “direito sagrado à propriedade” porque entendiam a revolução do ponto de vista da própria classe delas. Hostis às abastadas burguesas, mesmo quando estas usavam o barrete vermelho da revolução, elas instintivamente lutaram por uma república em que todos os homens e mulheres seriam verdadeiramente iguais – não apenas iguais perante a lei -, isto é, elas lutaram por uma sociedade sem classes, um mundo sem ricos e pobres. Sabemos agora que isso era um objetivo impossível na época. As forças produtivas que são a base material para o socialismo não tinham ainda alcançado um nível de desenvolvimento suficiente para permitir isso. A natureza de classe da Revolução Francesa era necessariamente burguesa. Mas isto de nenhum modo era claro para as massas que tão entusiasticamente se mobilizaram pela Revolução e selaram a vitória dela com seu próprio sangue. Elas não estavam lutando para colocar o poder nas mãos dos burgueses, fossem homens ou mulheres, mas para assegurar a justiça para a sua classe. A luta entre as tendências revolucionárias e as moderadas manifestou-se nas fileiras das mulheres de uma forma muito aguda.

Vale ressaltar que, terminado o período agudo da Revolução Francesa e das instabilidades institucionais que gerou durante o seu desenvolvimento, com o propósito de restabelecimento da “ordem”, a ideologia machista, depreciadora do gênero feminino, volta forçosa e urgentemente para o plano ideológico, obra da classe dominante e de suas instituições, como, por exemplo, a Igreja Católica. A opressão feminina é um dos fatores imprescindíveis para a manutenção do capitalismo, intimamente ligado à família e à propriedade. 

De forma resumida, pode-se perceber que, apesar de a mulher pobre ser ainda mais oprimida e explorada que a mulher de alta classe, ambas uniam-se nas reivindicações comuns. Entretanto, a diferença entre ambas se intensifica à medida em que se amadurece a conformação das duas classes econômica e politicamente centrais no capitalismo: o proletariado e a burguesia. No decorrer do século XIX evidenciavam-se cada vez mais as diferenças de interesses de operárias e burguesas. É também neste século que Marx e Engels desenvolvem o socialismo científico, norteador de grande parte do movimento operário europeu no mesmo século.

Momentos históricos da formação do capitalismo em diversos países contribuíram para o amadurecimento da produção industrial globalizada e para a formação das classes de burgueses e proletários. Por exemplo, a onda revolucionária de 1848 consistiu neste amadurecimento socioeconômico na Alemanha, Áustria e Hungria, locais onde o capitalismo ainda não havia se desenvolvido por completo, e ocorria a agudização das contradições entre interesses dentro da sociedade. Após a queda da monarquia e após a revolução burguesa, notou-se, por um lado, notável coragem e engajamento da classe trabalhadora, em contraposição aos freios receosos da pequena burguesia e da burguesia à revolução socialista. Justamente porque não passavam pela mesma condição de vida insuportável da classe trabalhadora, apesar de que não havia condições objetivas para tal revolução, segundo explica Trotsky em “Balanços e Perspectivas”.

No mesmo ano, Marx e Engels, a convite da Liga do Comunistas, escreveram o Manifesto do Partido Comunista, em que constavam reivindicações pela verdadeira emancipação da mulher e denúncias à hipocrisia burguesa quanto à causa comunista: “para o burguês, sua mulher nada mais é que um instrumento de produção. Ouvindo dizer que os instrumentos de produção serão explorados em comum, conclui naturalmente que ocorrerá o mesmo com as mulheres”.

Outro marco da insatisfação diante das contradições do capitalismo na Europa foi a Comuna de Paris (1871), que resultou na fundação do primeiro governo operário da história, hostil à burguesia. Estes momentos foram marcados pelas lutas pela libertação da mulher. Entretanto, foi ocupado apenas por proletárias, enquanto as burguesas se opuseram, o que expressa sobretudo o caráter de classe da luta, e não de gênero.

A Primeira Guerra Mundial foi outro acontecimento que pôs à prova a união das mulheres de classes diferentes. Houve polarização entre as burguesas nacionalistas pró-classe dominante e as trabalhadoras que denunciavam a guerra e lutavam pela revolução socialista no momento de fragilidade das burguesias nacionais. Neste período, houve também a polarização dentro da Segunda Internacional, em que grande parte defendeu o apoio à guerra imperialista. Rosa Luxemburgo, revolucionária alemã, se opôs à participação da Internacional na Guerra.

Rosa Luxemburgo (1871-1919), cuja trajetória coincidiu com a de Zetkin na fundação da Liga Spartacus, que originou o Partido Comunista da Alemanha, foi uma economista polaco-germana marxista de grande contribuição para o movimento operário europeu, ligada à Social-Democracia da Polônia, ao Partido Social-Democrata da Alemanha e ao Partido Social-Democrata Independente da Alemanha, o qual originou o Partido Comunista da Alemanha, em 1919.

Também contribuiu com a imprensa e a formação operária na Alemanha, com a fundação do jornal A Bandeira Vermelha em 1918. Quando a revolta de 1919 foi esmagada, milícias compostas por veteranos da Primeira Guerra capturaram e assassinaram comunistas, como ocorreu com Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, fuzilados. A memória de ambos repercute na consciência revolucionária alemã e por todos os movimentos revolucionários pelo mundo.

Neste período de guerra, a mulher é mais ainda inserida na produção para substituir os homens que estavam no campo de batalha, o que é decisivo para o protagonismo da revolta das mulheres russas na Revolução de 1917.

[continua…]

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