“Acorda que o sonho acabou, a PM chegou!”
Foi assim que acordei em 18 de novembro de 2016, quando a reitoria da Universidade do Estado de Santa Catarina foi desocupada por mais de 100 policiais armados para retirada de não mais que 30 estudantes dormindo, munidos apenas pelo desejo revolucionário de uma escola para todos.
Tremi de medo por estar cercada de policiais que me filmaram, que tiraram fotos minhas, me revistaram. Assim fizeram com todos os meus companheiros, que ocuparam comigo por 25 dias uma reitoria que ficou com cheiro de gente. Gente que vive, que ensina, que aprende, que come, que dorme e, principalmente, que acorda. Acorda pra realidade esdrúxula do país, do mundo que vivemos. Este cheiro que minutos após a reintegração de posse foi eliminado com lava-jato e cloro para não infectar os trabalhadores sérios da reitoria, juntamente com tudo que lembra a escola: cartolina na parede, desenho e alunos. Todos esses foram expulsos do local, identificados pela Polícia Militar e ameaçados pela universidade de sofrerem punições acadêmicas, com multa de 5 mil reais por dia, caso voltassem a se manifestar.
A ocupação aflorou a consciência de coletividade. Obedecer regras tomadas em conjunto para melhor convivência, tendo consciência de que ocupar é difícil e não é férias. É aula em mais intenso período, é intensamente educativo e com carga pesada de ensinamentos. Como qualquer movimento social, ela teve diversas dificuldades e incoerências que de nenhum modo a deslegitima. Tentamos com muita dificuldade ganhar a maioria dos estudantes para a luta, realizando assembleias com todos, para discutir e decidir, democraticamente, pelo que e como lutar. Embora na prática não tenhamos conseguido, evitamos nosso isolamento da maioria dos estudantes, pois não queríamos ser um pequeno grupo consciente, isolados dos demais.
Ao meu ver, o que mais incomodou a representação do Estado dentro da universidade, não foi alunos comendo e tornando “insalubre” o espaço da reitoria. Foi, na realidade, quando alguns dos trabalhadores do espaço tomaram o lado da ocupação. Conversaram com os alunos e puderam fazer suas próprias reivindicações. Quando os terceirizados, que tanto sofrem dentro da universidade, com péssimas condições de trabalho, gostavam de ouvir nossas aulas sobre racismo, machismo, luta de classes e apoiavam nem que fosse batendo palma para nós nos seus postos de trabalho ou tomando um café com a gente. Quando um trabalhador gostou de ouvir os estudantes, dizendo preferir a reitoria ocupada.
Ocupamos de consciência a reitoria da UDESC. Diversos movimentos e várias bandeiras conviveram de maneira pacífica contra a PEC 55 (antiga 241). Fizemos aulas do ENEM para estudantes da periferia que entraram pela primeira vez nessa universidade que se diz pública e “de todos os catarinenses”. Abrimos a universidade para a comunidade, com rodas de conversa, oficinas diversas, apresentações artísticas e debates. Tínhamos bambolê e livros, professores, alunos, pais, filhos e trabalhadores aprendendo dentro da universidade. Construindo na teoria o que ela deveria ser na prática: local de discussão de conhecimento para todos. Não apenas para nós, que já estamos lá dentro, privilegiados.
Fazendo isso, incomodamos muita gente. Desde funcionários da reitoria, que alegaram não quererem estar em “local insalubre com pessoas estranhas”, alunos que pediram que saíssemos para que eles pudessem voltar a ter paz e poderem estudar, fechados em suas salas, professores que nos chamaram de doutrinados por defendermos a educação e lutarmos por ela e moradores do bairro nobre Itacorubi, que acham que pagam imposto e, por isso, não dividem o bairro com um “bando de vagabundos”.
Não foi o incômodo que causamos que nos retirou da reitoria. Foi o diálogo que estabelecemos com alguns servidores. Foi porque agradamos pessoas que não deveríamos agradar. Gente que não estudou e que está em contato com o movimento estudantil. Jovens estudantes convivendo com professores, com técnicos e com servidores. A ocupação não terminou e não vai terminar. A polícia nos reprime e nos obriga a sair do espaço físico que é a Reitoria, mas a polícia não desocupa nossas mentes determinadas a lutar por educação.
Eu tenho medo de um policial armado que me revista, de quem torna isso espetáculo ao filmar e rir de estudantes que lutam pelo direito de estudar. Mas eu tenho muita esperança nas ocupações, nas greves, nas manifestações e como elas transformam quem luta. Elas fazem o estudante, que passa semestres sentados em um banco achando que o aprendizado tem lugar, aprender enquanto come, enquanto limpa, enquanto conversa e enquanto vive. Transformam indivíduos em coletivos. Sozinhos temos medo. Juntos somos revolução.