Divisão de trabalho no iFood: O inimigo é o Capital

Recentemente, circulou nas redes sociais um vídeo em que um trabalhador de entregas pelo aplicativo iFood, sentado no meio fio durante o intervalo das entregas (o que seria seu local de trabalho), reage a outro vídeo de uma trabalhadora da mesma empresa mostrando seu escritório, com uma legenda “e essa crítica social sem dizer uma palavra”, causando revolta pela inegável diferença entre os ambientes.

Embora nenhuma palavra tenha sido dita pelo trabalhador, a postagem ganhou um teor de repúdio às boas condições de trabalho em si, sendo apontadas como mordomias ou privilégios e até questionando se a trabalhadora tinha registro na carteira de trabalho, como foi a legenda da postagem de uma importante liderança do movimento dos trabalhadores de aplicativos, Paulo Galo. @galodelutaoficial

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Na mesma postagem e em várias menções em stories, alguns comentários apontaram que “no capitalismo para alguém ter regalias NECESSARIAMENTE alguém tem que ser explorado”, ou “os boys dominam tudo”. 

É totalmente legítimo o ódio de classe e o repúdio à injustiça diária que expõe entregadores a condições de trabalho precarizadas. Como se sabe, esses trabalhadores não têm  vínculo empregatício, o que é consequência direta da  Reforma Trabalhista. Recai sobre os trabalhadores das entregas os custos de manutenção do veículo, combustível, aparelhos eletrônicos como celular e máquinas de cartão, bem como a exposição a acidentes, assaltos e outros infortúnios sem nenhum amparo da seguridade social.

O inimigo é o Capital! 

Contudo, esse ódio de classe legítimo foi, nestas postagens, destinado à pessoa errada.  É equivocado e nocivo ao movimento dos próprios trabalhadores precarizados e terceirizados a concepção de que ter direitos são regalias. Nesse sentido, um dos comentários é bastante preciso ao pontuar: 

Ter condições dignas de trabalho, carteira assinada e previdência social não são regalias. Esses são direitos arrancados com sangue e suor pelas gerações passadas que se colocaram em luta contra a classe dominante. Quem tem regalias são os patrões, os donos do iFood, que passam o ano inteiro de férias e vivem da nossa exploração como classe, seja dos precarizados, seja dos de “carteira assinada”. Estes, a classe trabalhadora, são explorados e continuam sendo assalariados… os donos dos meios de produção e de serviços como o iFood é que lucram às nossas custas.

Nosso inimigo é o Capital. Enquanto continuarmos divididos e promovendo a divisão da classe trabalhadora, não seremos capazes de nos opor ao Estado capitalista e à própria burguesia que detém tudo – bancos, armas, meios de comunicação, escolas, igrejas, universidades etc. – para manter sua opressão e exploração. 

A divisão entre trabalho manual e intelectual 

Historicamente, a divisão social do trabalho entre manual e intelectual se deu por conta da produção de um excedente. Pela primeira vez na história, os humanos foram capazes de domesticar plantas e animais e fazer reservas de alimentos e outros itens necessários à produção e reprodução da vida material. Mas esse excedente tornou-se muito maior e foi possível realizar trocas. As trocas traziam outros produtos e, com o tempo e a invenção do dinheiro, passaram a trazer também lucros. Com as trocas e lucros, uma nova necessidade surgiu: a da escrita e dos registros contábeis. Os escribas surgem na Antiguidade com a função de registrar as trocas, registrar leis e posteriormente de contar as histórias dos reis, faraós e divindades. 

Essa classe “especial” dominava a arte da escrita e fazia parte da corte real. Por esse motivo, estava dispensada de realizar o trabalho manual. Enquanto isso, a maioria esmagadora continuava sem saber ler ou escrever e era forçada, seja pelo trabalho livre ou pelo escravizado, a realizar o trabalho braçal pesado. 

No vídeo da trabalhadora do escritório do iFood, fica evidente que ela está propagandeando as boas condições fornecidas pela empresa. Nesse caso, mesmo sendo explorada e assalariada, ela possivelmente se considera uma escriba da “corte real”, beneficiada pela meritocracia do sistema de divisão em classes sociais a realizar esse “trabalho intelectual” no escritório da empresa. A crítica suave na forma e dura no conteúdo que devemos fazer a ela e a todos os trabalhadores que têm ilusões no Capital diz respeito a eles não reconhecerem sua condição de explorados. Essa situação pode ser revertida pelas próprias condições objetivas onde, em situações de crise como a que vivemos, o iFood seja obrigado a demitir em massa ou cortar e atrasar salários e direitos para garantir a ampliação de seus lucros. São nesses eventos que trabalhadores iludidos com o Capital percebem o lugar que ocupam e passam à luta. 

Da alienação à luta pela unidade 

A novidade do vídeo atinge os estômagos também por causa de um outro componente do capitalismo que é a alienação do trabalho. A maioria dos entregadores conhece apenas a própria realidade da jornada sem limites, de trabalhar sob o sol, sem previdência, sendo mal pagos etc. e é chocante descobrir que a mesma empresa oferece áreas de descanso, refeitórios e até “openbar” em seus escritórios. Porém, o caminho de uma concepção de classe passa por apontar todas as armas da crítica aos responsáveis pela subjugação de seus trabalhos, direcionando a revolta da categoria e de todos os  trabalhadores da empresa aos que empilham lucros em cima de lucros. 

O Capital divide os trabalhadores para que não conheçam o processo produtivo e não participem de todas as atividades da produção. A divisão do trabalho foi responsável por aumentar a produtividade, ou seja, fazer-nos trabalhar mais em menos tempo, com a mesma quantidade de pessoas. 

É interessante ao Capital dividir a classe para arrancar diferentes taxas de trabalho não pago e também para impedi-la de atuar em unidade. No serviço público, com a terceirização das atividades meio, também temos situações parecidas. Em que servidores conseguem fazer greve, porque têm estabilidade, e os terceirizados não, porque podem ser demitidos. 

O Capital tem interesse extremo em manter a classe trabalhadora dividida em átomos isolados uns dos outros, cada um preocupado demais em garantir sua própria existência individual. Melhor ainda se nós mesmos estivermos nos dividindo entre privilegiados ou precarizados. 

Nossa luta, desde os tempos de Marx, é pela unidade e independência da classe trabalhadora. Assim, nós lutamos pela revogação de todas as reformas da previdência, da terceirização e reforma trabalhista. Lutamos por carteira assinada para todos os entregadores. Fim das entregas múltiplas e reajuste das taxas pagas por entrega. Exigimos condições dignas e seguras de trabalho aos entregadores e acesso a seguridade social por meio do registro em carteira. Essas são as demandas que nos unificam, trabalhadores de escritório ou das ruas. Para conquistá-las temos que nos organizar de maneira totalmente independente da burguesia e dos patrões e lutar. Nessa luta, vamos encontrar diferentes companheiros e companheiras como suas próprias experiências da vida, cargos, salários, condições de trabalho e direitos. Vamos recusar nos associarmos a eles porque são diferentes de nós? Não! Vamos batalhar para que todos conquistemos os direitos exigidos, seja a ampliação dos direitos já existentes, seja a conquista de novos. 

Nesse caminho, alguns certamente ficarão para trás, iludidos com as condições que o Capital pode lhes oferecer. Nossa tarefa é seguir aumentando nosso nível de organização, nossa compreensão sobre a história e o funcionamento da sociedade em que vivemos. É na luta pela unidade e independência da classe, pela superação do sistema capitalista que podemos encontrar uma saída final para reconciliar o trabalho manual e intelectual.

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