É preciso dar um jeito, camaradas

Na última semana fui com meu companheiro ao cinema Reag Belas Artes, em São Paulo, para assistir “Ainda estou aqui”, de Walter Salles. 

Na entrada de um dos cinemas de rua mais antigos de São Paulo, uma placa da prefeitura conta sua história. Antes de entrar, um grafite na lateral do prédio me chamou atenção: “Palestina Livre – genocídio nunca mais”. 

O local foi inaugurado em 1943 e foi um dos espaços para a resistência intelectual contra a Ditadura Militar, contexto político e social do filme que fomos assistir. Depois de um grande incêndio e de uma decadência, ele fechou e foi reaberto sob patrocínio de André Sturm, com apoio do banco HSBC. Em 2010, o patrocínio acabou e novamente o cinema fechou as portas. Só reabriu com dinheiro público da prefeitura e da Caixa Econômica Federal para depois ser entregue de novo para a iniciativa privada. 

Subimos as escadas e enquanto esperávamos a sala abrir admiramos o pôster de “O Encouraçado Potemkin”, de Sergei Eisenstein, e de “Vertigo” de Alfred Hitchcock, clássicos. 

Imagens: arquivo pessoal do autor

O filme de Walter Sales, com a brilhante atuação de Fernanda Torres, é um soco no estômago. Uma fotografia impecável com momentos familiares, muitas vezes registrados pela câmera de uma jovem. Um passeio pela música popular brasileira na trilha sonora. O sofrimento causado pela tortura, execução e desaparecimento de um dos seus entes queridos pelo olhar sensível dos membros da família. 

A mãe, Eunice Paiva, muito longe de ser monocórdica – termo que está relacionado a um tom de voz único, sem variação, enfadonho ou monótono, dado à Fernanda pela crítica francesa – na verdade, expressa toda a angústia e sofrimento de uma mãe de cinco filhos, crianças e adolescentes, em meio a uma ditadura que desapareceu com o carinhoso pai dessa família. 

Em entrevista, Fernanda Torres disse: 

“Ela não chora e isso é uma coisa que queríamos que fosse muito fiel à Eunice. Tudo parecia muito real, foi um filme muito verdadeiro. Fiquei surpresa com a nossa atuação, fiquei surpresa comigo. Foi uma performance honesta, a qual tenho muito orgulho. Me ensinou muito. Quando Eunice não chora, é a audiência que chora por ela. A audiência sabe pelo que ela está passando, mas ela não mostra.”

Ela tem razão. Provavelmente esses críticos franceses não têm filhos, foi o que dissemos em lágrimas após a sessão… 

Meu companheiro disse com muita emoção “geralmente eu sou insensível, mas duas coisas me sensibilizaram muito no último período: o nascimento da nossa filha e esse filme”. É verdade, ele não conteve as lágrimas, nem eu. 

Toda hora ressoava na minha cabeça a música tema do filme “É preciso dar um jeito, meu amigo”, de Erasmo Carlos, que eu nem sabia que gostava. A letra, para mim, fala tudo sobre esse filme e a personagem da nossa história retratada por Fernanda: é preciso dar um jeito. 

Ao saber que seu marido fora assassinado, ela decide vender a casa, mesmo que abaixo do preço, e se muda para São Paulo com seus cinco filhos. Decide fazer faculdade de direito e abrir um processo para que tivesse o atestado de óbito de Rubens Paiva. Esse atestado só veio em 1996, 25 anos depois. 

Ela, pelo que somos informados no filme, não era envolvida com movimento político nem social. Era uma mãe de família pequeno-burguesa no Rio de Janeiro e parecia muito feliz. 

Um dos membros de sua família é preso, torturado e está entre os 21 mil torturados e cerca de 300 mortos pela Ditadura Militar no Brasil, não porque se envolveu diretamente com o enfrentamento à ditadura ou porque fosse um comunista. Mas porque Paiva prestou apoio a uma das integrantes do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), organização que realizou a prática de guerrilha urbana e de substituição das massas por um pequeno grupo, por exemplo, o sequestro do embaixador norte-americano, Charles Elbrik, no Brasil. 

Em situações excepcionais, todas as classes são afetadas e sofrem divisões. Na ausência de um fator subjetivo – um partido revolucionário com influência de massas – uma ditadura foi imposta para manter a dominação burguesa. Sem meios legais de luta política, pequenos grupos impacientes resolvem substituir as massas. A pequena burguesia se divide, uma boa maioria fica entre aqueles que apoiam o regime, mas há os que apoiam os movimentos revolucionários, ainda que ilegalmente e com consequências. Até mesmo setores baixos das forças armadas expressam essa divisão, como vemos no filme, o soldado que afirma à Eunice não concordar com nada daquilo. 

Eunice dá um jeito. Seu jeito é individual, não coletivo. Mas ela encontra um jeito de seguir. Particularmente o que me chamou atenção enquanto militante comunista foi observar as condições. Imagina só. Eles, que nem comunistas eram, foram brutalizados pelo Estado burguês, exercendo sua dominação numa das formas menos dissimuladas – a ditadura. Imagina só o que estavam passando os comunistas?

O fato é que nem sempre temos as melhores condições para a nossa militância. Pensamos que precisamos ter os filhos crescidos, ou às vezes nem os ter, ter um bom emprego e um bom salário, pensamos que nossa vida precisa estar organizada para que possamos dedicar algum tempo às causas coletivas. Mas na verdade, é o contrário disso. Nós damos o nosso jeito, que é coletivo, exatamente porque as condições não são favoráveis e somos conscientes de que podem piorar ainda mais. Exatamente porque o sistema nos confere uma existência desumana, a qual rechaçamos e desejamos ardentemente algo melhor. É exatamente porque temos condições tão degradantes que decidimos lutar e nos prepararmos para grandes eventos, para eventos que são como uma avalanche: removem tudo do lugar, para estabelecer uma nova ordem. 

Do seu jeito, Eunice alcançou seu objetivo. Ela ficou muito feliz com o processo de seu marido culminar no atestado de óbito, ainda que não tivesse a causa mortis.  

Depois de toda a repercussão, vencedor do Globo de Ouro em melhor atriz e 3 indicações ao Oscar, com 96% de aceitação da crítica especializada e 99% de aprovação do público, o impacto do filme fez com que as bastardas autoridades brasileiras mudassem a causa mortis do atestado de óbito de Rubens Paiva – agora lê-se no documento do Conselho Nacional de Justiça: “não natural; violenta; causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”. 

Sem dúvida é uma vitória. Não apenas individual, para a família Paiva, mas também coletiva porque reconhece os crimes bárbaros que foram cometidos pela ditadura. Mas, como nossa democracia é muito, muito bastarda mesmo aqueles indivíduos que foram identificados como os agentes da tortura e assassinato de Rubens não foram punidos até hoje. Ainda há muito o que fazer… 

O jeito que Eunice Paiva deu, por mais individual que tenha sido, ainda tem um importante significado e fez parte das diferentes lutas contra os crimes cometidos na ditadura. Ela foi uma porta-voz viva desse episódio bárbaro de nossa história e o filme tem o mérito de contar uma parte dessa história para a nova geração. A Ditadura Militar, fruto da ingerência imperialista na América Latina, por sua vez, foi enterrada pela ação de milhares de homens e mulheres que, coletivamente, enfrentaram o regime. 

O filme fala de apenas um caso. Mas nenhum dos 377 apontados como responsáveis pelos crimes da ditadura, no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 2014, foram punidos. A Lei da Anistia, promulgada em 1979 ainda sob a ditadura, perdoou todos os crimes cometidos entre 1969-1979. A CNV foi extinta por Bolsonaro no penúltimo dia de sua gestão. Lula apenas recriou a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos em julho de 2024. 

O fato de que em 2023, contra os ataques antidemocráticos de 8 de janeiro, as pessoas se levantaram dizendo “sem anistia” mostra que não esquecemos e nem perdoamos, que também ainda estamos aqui. Mais ainda, não perdoamos as degradantes condições que estamos vivendo. Engolimos o choro, assim como Eunice, e estamos dando tudo de nós para sobreviver e para levar o sustento para a mesa. Mesmo sob tamanha pressão, continuamos dando um jeito. 

O que eu acredito é que esses acúmulos individuais uma hora alcançarão a consciência coletiva e toda a raiva contra esse sistema brutal emergirá como uma força social revolucionária e de massas. Quero estar nas minhas melhores capacidades físicas e mentais quando isso acontecer. 

Ainda estamos aqui sob o capitalismo. É preciso dar um jeito, camaradas. 

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