O que podemos aprender com a revolta da “Geração Z” no Nepal?

Atravessamos uma nova situação mundial com o salto de qualidade da crise internacional do capitalismo e suas consequências políticas, principalmente o acirramento dos antagonismos das classes sociais em todos os países e continentes. Inevitavelmente, esse período coloca a juventude como ponta de lança de revoltas e revoluções por seu espírito de agitação contra as opressões e a exploração.
Neste momento, uma das grandes demonstrações é feita pela juventude no Nepal. A “revolta da Geração Z”, conhecida também como o movimento #WakeUpNepal nas redes sociais, exemplifica a correta análise que realizamos da nova situação mundial.
No caso específico, o estopim nepalense foi a medida governamental que baniu 26 plataformas digitais no país (incluindo o Instagram, o YouTube e o WhatsApp). Mas o caráter desse movimento vai muito além da defesa da liberdade de expressão e das redes sociais, ou mesmo de um possível fomento das Big Techs para esse movimento contra o Estado governado por nacional-comunistas, como explicaremos em seguida.
Devemos identificar nesse movimento o salto na consciência de jovens que estão levando às ruas dezenas de milhares de pessoas. No Nepal e em todo o mundo, nossa classe demonstra estar disposta a travar uma verdadeira guerra contra as misérias geradas pelo capitalismo e contra o próprio sistema, os privilégios acumulados pelas classes dominantes nacionais e imperialistas.
A revolta “Z” no Nepal
No dia 4 de setembro, o governo do Nepal anunciou o banimento das plataformas digitais mais utilizadas pela juventude. A justificativa era o não cumprimento dos novos regulamentos estabelecidos pelo governo, como seu enfrentamento às fake news, ao discurso de ódio e às fraudes on-line. Dias depois, em 8 de setembro, dezenas de milhares de jovens foram às ruas em protesto contra a medida tomada pelo governo, em defesa da liberdade de expressão e exigindo o fim do banimento. O parlamento e residências de figuras importantes do país foram incendiados, e a repressão da polícia contra os manifestantes resultou em mais de 70 mortes e mais de 400 feridos.
No dia seguinte, 9 de setembro, o primeiro-ministro K. P. Sharma Oli renunciou, seguido por outros ministros. Anil Baniya, um dos líderes do movimento Hami Nepal, declarou em uma entrevista:
“Agora temos mais o dever de corresponder às expectativas dos nossos amigos que foram assassinados pelo Estado. Precisamos derrubar este governo, exigimos a renúncia em massa e queremos que eles saiam. Este é o nosso país.”
A onda de protestos atingiu seu ápice entre os dias 8 e 13 de setembro. No dia 12 de setembro, Sushila Karki foi declarada primeira-ministra interina, sendo a primeira mulher a ocupar o cargo na história do Nepal. O parlamento foi dissolvido pelo presidente Poudel, e uma eleição foi marcada para o dia 6 de março de 2026.
Como não há vácuo na política, em meio à revolta surge o elemento da disputa pelo movimento, ou até mesmo sua incitação, pelas Big Techs, atacadas pelas ações do governo agora destituído. Entretanto, independentemente de um suposto papel desempenhado pelas grandes corporações tecnológicas no Nepal, o fato é que o banimento das redes sociais serviu como gatilho para a revolta que se desencadeou nos dias seguintes, mas não como sua motivação principal.
A temperatura da luta de classes está em ascensão há meses nesse país, como podemos observar na trend “Nepo Kids”, criada no início do ano com o objetivo de expor a vida luxuosa levada por filhos de figuras importantes do Nepal, que ostentam carros de luxo, roupas de grife e viagens caras pagas com o dinheiro público. Enquanto isso, a massa trabalhadora do país vive em pobreza extrema, que atinge cerca de 20% da população.
A chamada Geração Z possui uma raiva legítima acumulada em anos vendo os filhos da elite viverem com enormes privilégios, enquanto a maioria da população luta para sobreviver com a alta taxa de desemprego, inclusive entre os mais novos, que se veem forçados a migrar para outros países, e com o salário-mínimo incapaz de garantir condições de vida decentes aos trabalhadores.
É nesse contexto que as redes sociais têm funcionado como ferramentas cruciais para a divulgação, mobilização e registro dos protestos. Ainda assim, consideramos as redes como meios de propagação do movimento revolucionário, não como seu fim.
Em toda conjuntura, o que fica mais evidente é que a “revolta Z” nepalesa não está sozinha. O vento revolucionário sopra sobre todo o Sudeste Asiático, especialmente na Indonésia e nas Filipinas, e se espalha rapidamente por todos os continentes: como na África, com mobilizações em Madagascar e no Marrocos; na Europa, com mobilizações pela Palestina na Alemanha, Espanha, Itália, Bélgica, França, Grécia e Turquia; e nas Américas, com as mobilizações no Peru, no Brasil e nos Estados Unidos, onde a juventude e a classe trabalhadora também deixam claro que não estão derrotadas.

Nas Filipinas, milhares de manifestantes foram às ruas para protestar contra projetos fantasmas de controle de enchentes que, segundo o Departamento de Finanças, receberam investimentos de até 118,5 bilhões de pesos (US$ 2 bilhões) entre 2023 e 2025.
Na Indonésia, o aumento de salários e regalias para os parlamentares também colocou a juventude em revolta contra os inimigos de classe e seus representantes. Em Madagascar, as manifestações da juventude contra os cortes de água e energia fizeram o presidente do país anunciar a dissolução do governo.
Tudo isso nos mostra como os tremores revolucionários não reconhecem fronteiras. A polarização da luta de classes, causada pela decadência do sistema capitalista em escala global, atinge diferentes países em diferentes graus, mas há uma aceleração da luta de classes em todo o mundo. O cenário visto no Sudeste Asiático com massas nas ruas, demonstrando saltos de qualidade na consciência de classe da população e cenários verdadeiramente revolucionários se repete em diferentes cantos do mundo.
No Brasil, as manifestações convocadas para o dia 21 de setembro contra a anistia foram as maiores vistas na história recente e foram capazes de derrotar a PEC da Blindagem, desmoralizando os bolsonaristas e o chamado Centrão. Em outras partes do mundo, como na Itália, a luta pela Palestina Livre engrossa o caldo revolucionário.
Com cada nova manifestação, a juventude e a classe trabalhadora enviam um recado à burguesia: não estamos derrotados, estamos cansados de viver assim, exigimos um futuro, e esse futuro não pode ser oferecido pelo sistema capitalista. É socialismo ou barbárie!
Para conquistar o socialismo, é necessário ter uma direção preparada para assumir a tarefa de guiar as massas durante um período de insurreição. O exemplo do Nepal, cujas massas se levantaram com sangue nos olhos, sem uma direção verdadeiramente marxista com influência de massas, demonstra o quão crucial é a construção do fator subjetivo das revoluções: a direção política.
Quem governava o Nepal?
Por 240 anos, o Nepal, um território encravado entre a Índia e a China, nas costas da cordilheira do Himalaia, foi uma monarquia. A luta contra esse regime reacionário foi vitoriosa a partir dos anos 1990, quando inicialmente se superou o absolutismo, instaurando-se uma monarquia parlamentar. Entretanto, esse tipo de governo, supostamente mais democrático, nunca foi estável. Seus primeiros-ministros caíam um após o outro ao longo da década de 1990. Esse é o histórico de luta da classe trabalhadora nepalense, ainda vivo na memória dessa sociedade.
Contudo, a direção do movimento revolucionário do Nepal, que protagonizou a revolução ocorrida entre 2005 e 2006, teve como sua direção partidos ligados ao nacional-comunismo, dividido entre as duas principais correntes desse movimento: o maoísmo e o stalinismo.
Um potente processo revolucionário na Ásia, capaz de derrubar os resquícios absolutistas de uma monarquia decrépita e vassala do imperialismo, tendo como direção os partidos Partido Comunista do Nepal – União Marxista-Leninista e Partido Comunista do Nepal (Maoísta), terminou por restringir o proletariado e a juventude nepalesa aos limites nacionalistas e às instituições do Estado burguês de uma população dominada. Essa revisão do marxismo, fruto das burocracias soviéticas e chinesas, montou um governo de coalizão, dividido entre os maoístas e os stalinistas, no país, com a Assembleia Constituinte de 2008, que inaugurou a República do Nepal.
Suas ações, avessas ao socialismo internacionalista, mantiveram no parlamento inclusive representantes da monarquia derrubada e partidos burgueses, que hoje seguem vivos, atuando em meio à crise revolucionária da juventude.
Essa aliança entre os dois partidos “comunistas” surgiu como uma promessa de estabilidade para o país. Eles possuíam maioria no parlamento e, em 2017, obtiveram a vitória mais expressiva desde os anos 1990.
Como resultado dessa “pacificação” do país, esses dois partidos “comunistas” chegaram, inclusive, a se fundir, dividindo a direção do novo Partido Comunista do Nepal entre K. P. Sharma Oli, o dirigente “marxista-leninista”, e Prachanda, o dirigente maoísta. Esse acordo entre os burocratas máximos previa que um passasse o poder para o outro de maneira alternada.
Assim, em 2018, sob o comando de Oli, esse “marxista-leninista”, autêntico nacional-comunista, recebeu apoio popular, pois sofreu bloqueios econômicos da Índia. Mas, em pouco tempo, entrou na mira dos trabalhadores e da juventude, insatisfeitos com a ausência de qualquer ação minimamente voltada ao combate às desigualdades no país, como a reforma agrária.
Politicamente, Oli centralizou o poder e abandonou o acordo com os maoístas, jogando para escanteio o outro burocrata, Prachanda, o que levou ao retorno da cisão entre os dois partidos. Em 2020 e 2021, Oli tentou dissolver o parlamento, justificando que estava sendo impedido de governar, mas, nas duas ocasiões, a Suprema Corte anulou suas ações. O Judiciário do Nepal, inclusive, anulou a anterior fusão dos nacional-comunistas em um só partido, demonstrando como essas direções eram nada mais que grupos a serviço da ordem capitalista do Nepal, e não verdadeiros partidos comunistas com um programa revolucionário para os trabalhadores e a juventude.
A crise sanitária da Covid-19 aprofundou a crise no país, principalmente porque o governo “comunista” de Oli não deu o devido investimento ao sistema de saúde e atrasou a compra de vacinas, além de enfrentar denúncias de corrupção nesse processo. Era o caminho sendo pavimentado para a atual explosão.
A juventude, essa chamada de Geração Z, não reconhece mais essas direções nem o governo burguês, vestido de vermelho e alegorizado com a foice e o martelo, como seus representantes. Nessa conjuntura, o governo de Oli chegou ao ponto de realizar a presente coligação com o Partido do Congresso do Nepal, representante da direita, junto com outras alianças conservadoras e até mesmo com monarquistas.
Foi a ruína desse regime, em que nem o discurso nacionalista nem qualquer outra bravata se comprovavam na realidade, que demonstrou a aproximação de Oli e seu governo ao imperialismo norte-americano. O resultado não poderia ser outro, sob essas condições, senão o levante da juventude contra o autoritarismo, a miséria, a corrupção e a traição dos nacional-comunistas do Nepal, evidenciando o caráter contrarrevolucionário dessa corrente revisionista do marxismo.
A revolução, o partido e a classe
“Sem uma organização dirigente, a energia das massas se dissiparia como um vapor não encerrado numa caldeira com bombas de pistão. Entretanto, o que move as máquinas não é nem o pistão nem a caldeira, mas o vapor.” (Trotsky, História da Revolução Russa)
Como dissemos anteriormente, um processo revolucionário constitui um salto de qualidade na organização e na ação de classe. No calor revolucionário, as necessidades das massas se acentuam e se aceleram. Velhas ferramentas, velhas figuras e instituições são trocadas do dia para a noite, e a classe vai ao limite do que existe e exige algo novo.
Como Leon Trotsky explica em sua passagem do livro “História da Revolução Russa”, o processo revolucionário é um desenvolvimento desigual e combinado entre a classe em revolta e as condições materiais e subjetivas existentes.
Todo movimento revolucionário será espontâneo quando se referir ao movimento da classe. Esse processo só se inicia se as condições, ou melhor, as contradições do sistema atual, estiverem maduras. Isso significa que o processo revolucionário começa quando a classe não encontra mais alternativas para sua manutenção dentro das condições da sociedade vigente.
Portanto, uma revolução não é, a priori, “progressista” ou “de esquerda”, ela é uma explosão de todas as contradições acumuladas, que as massas não encontram outros meios de resolver senão entrando em cena e controlando diretamente seus destinos.
Como Trotsky diz, é o vapor o único que move a máquina da revolução. Entretanto, esse movimento está condicionado às ferramentas que possibilitam tal ação. Essa espontaneidade, por mais intensa que possa ser, tem seus limites.
Trata-se de um processo repleto de contradições, inerentes à realidade de uma sociedade dividida em classes. Entre exigir o novo e permanecer preso às vias conhecidas, a classe trabalhadora em revolta está, em certa medida, suscetível a ideias alheias à sua libertação. Nesse momento, a classe contrarrevolucionária utiliza sua máquina de propaganda ideológica e seu aparato repressivo para criar todas as saídas que aliviam o ódio de classes.

Aqui entra o fator subjetivo da revolução: o partido organizado, armado de um programa consequente e em ação. Este, como Marx afirma, não se constitui como algo separado da classe, mas é a sua ala mais consciente, ativa e resoluta — o pistão, na analogia de Trotsky.
Se a classe só continua a avançar quando enxerga o movimento, é o partido o responsável, como essa ala consciente, por organizar e pavimentar o caminho, dirigindo a ação das massas até suas últimas consequências rumo à tomada do poder. Por meio da análise teórica materialista e rigorosa, o partido é o responsável por compreender as dinâmicas e relações do processo revolucionário e apresentar a saída para os bloqueios e contradições que se manifestam no curso da revolução. E, de forma dialética, essa capacidade do partido é forjada na ação concreta da luta de classes e do próprio processo revolucionário.
O programa e os métodos de ação do partido serão colocados à prova de fogo no processo da revolução, e cabe a ele tratar a realidade como critério máximo para guiar a ação. Portanto, o partido tem, no próprio processo de luta de classes, as bases de sua formação; é nele que se submete e dele que extrai o elemento essencial para o sucesso de um processo revolucionário.
Essas dinâmicas e expressões do movimento revolucionário estão expostas na experiência da classe trabalhadora no Nepal. A corrente costuma se romper em seu elo mais fraco. Em nosso tempo, é a juventude a camada da sociedade que será mais soterrada pelas contradições do sistema.
Sem perspectiva de futuro, submetida a condições de vida e de trabalho cada vez mais degradantes, ou mesmo à ausência de trabalho e de oportunidades de estudo. Entretanto, de forma dialética, é essa juventude que mais se incomoda com essa situação. A juventude, sem carregar as derrotas do passado e ainda moldando suas ideias, encontra-se livre, ou melhor, ainda em disputa, entre as ideias revolucionárias do movimento operário e a ideologia burguesa. É o que vemos em todo o mundo, como demonstramos nos processos em curso neste momento, especialmente na Ásia.
Diante dos jovens revolucionários e trabalhadores do Nepal está a luta pela construção de um verdadeiro partido operário independente, armado com um programa marxista, varrendo os nacional-comunistas e a burguesia. Esse deve se formar a partir do ganho de toda essa vanguarda revolucionária para um programa independente de mudança de toda a sociedade, sem limites nacionais, colocando em xeque a propriedade privada e o domínio imperialista, submetendo-os à luta internacionalista.
A jovem revolução do Nepal precisa mobilizar e organizar os batalhões pesados de sua classe trabalhadora, forjados nas lutas contra a monarquia. Dessa vez, é necessário organizar cada trabalhador e jovem em assembleias em seus locais de trabalho, de estudo e de moradia, para que assim possam dar os próximos passos da revolução em direção à abolição da propriedade privada dos meios de produção e ao estabelecimento de um verdadeiro controle operário e democrático sobre todas as esferas da vida e da produção, garantindo as condições de vida e a perspectiva de futuro que o sistema capitalista é incapaz de oferecer no Nepal e no mundo!