Deus Branco – crítica
O que nos atrai em filmes sobre animais é o comportamento humano. Quando assistimos a um longa-metragem com cachorro, o que nos intriga, é como este personagem consegue resolver problemas humanos. Vemos nele uma capacidade de raciocínio e emoções que o tornam mais próximo ao homem e menos “animal”.
Hollywood “banalizou” este tipo de filme, principalmente sobre cachorros, ao exagerar a inteligência destes animais. Isso acabou empurrando estes Longas-metragens para o público infantil, que é menos exigente e se surpreende com mais facilidade. Deste modo, Deus Branco é um filme que consegue destoar dos que estamos acostumados a ver nos “enlatados americanos”.
A obra húngara, dirigida por Kornel Mundruczó, pode ser vista como uma metáfora, mas, ao mesmo tempo, convencer como um filme sobre um cachorro. Das duas maneiras, é uma boa surpresa. Isso justifica o prêmio recebido em Cannes 2014, melhor filme da mostra Un Certain Regard e a divertida Palm Dog, para o melhor cão atuando num filme do festival.
O filme conta a vida de Lili (Zsófia Psotta), uma menina de treze anos que passa a viver com o pai, Dániel (Sándor Zsótér), acompanhada pelo cão Hagen. Diferente da filha, ele não parece nutrir nenhum sentimento pelos animais. Daniel é um professor que trabalha como fiscal sanitário, alguém que parece estar extremante infeliz. A chegada da menina e do animal parece criar um novo problema para ele.
A mãe e o padrasto de Lili a entregam ao pai ausente, no açougue onde ele trabalha. É interessante analisar que, nesta cena, não há nenhum afeto pelos pais da menina. A mãe e o padrasto parecem estar mais preocupados na viagem que irão fazer, do que no tempo que a filha irá passar com o pai. A criança parece ser um estorvo, que os adultos não conseguem se livrar e são obrigados a cuidar.
A situação complica para o pai, que vive em um lugar onde não é permitido animais e precisa pagar uma multa, devido ao cão ser mestiço. Ele caiu no nível social, ao contrário da mãe da menina e do padrasto, que viajam por terem ascendido socialmente. Além disso, em vez de dar aulas, está trabalhando em um açougue e vive em um apartamento minúsculo.
É interessante notar como o animal e a menina encontram formas semelhantes de expressar a dor pelas dificuldades que passam. Enquanto o cão uiva por Dániel não o deixar dormir com Lili, ela toca no trompete melodias tristes. Desta forma, sem nenhum afeto por parte dos adultos, a menina constrói com o cão, Hagen, uma família.
O movimento da câmera no início do filme incomoda, pois parece ser algo descuidado. A câmera na mão tremendo e os ângulos, que escondem os outros personagens parece algo amador. Ao longo do filme, vemos que esse “descuido” é intencional, pois quer demonstrar o nível de visão da menina e do cão.
Das duas formas, os pontos de vista adotados pela câmera são confusos, pois é como Lili e Hangen veem a vida ao seu redor. Os enquadramentos sempre fechados ajudam a criar o desconforto pelo qual ela e o animal passam.
Este desconforto irá nos perseguir durante toda a obra, pois o cão é obrigado a atravessar uma longa jornada. Ao ser abandonado, o animal dócil começa a conhecer o mal e a dor. Primeiro passa fome, depois vai parar nas mãos de um mendigo, que o vende para um treinador de cães de briga, transformando-o em uma máquina de matar. Para piorar, ele vai para em um canil da onde escapa e monta uma gangue de 200 cães, que saem às ruas para buscar vingança de todos os que o maltrataram.
Hangen poderia facilmente ser uma pessoa, alguém que é impelido pelo meio a se tornar um “criminoso”. Ao ver as cenas, ao ser tocado pela história do cão, a sensação que fica é que toda a violência e dor poderiam ser evitadas, mas não foram. A frase de Bertolt Brecht me surge na cabeça, “do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”.
O cão mestiço também poderia ser uma minoria da Europa, imigrantes que acabam recorrendo ao ato violento pela repressão e a truculência das autoridades. Como disse antes, o longa-metragem pode ser visto como metáfora, mas também pode ser um filme sobre um cachorro.
Isso é claro, na declaração do diretor, “A história foi muito inspirada nas relações sociais inverossímeis e cada vez mais hostis dos dias de hoje. O senso de superioridade tornou-se um privilégio da civilização ocidental do qual é impossível não abusar. Em vez das minorias, escolhi os animais como tema do filme”, explicou.
O título é uma referência a um clássico de Samuel Fuller, “Cão Branco” (1982), que contava a história de um cachorro treinado para matar negros. Diferente de Fuller, Mundruczó parece ter uma perspectiva mais otimista. Os animais são igualmente violentos, mas só Hagen parece ter salvação. O cão de Fuller parece não ter saída para deixar de ser um monstro racista.
É interessante observar estas diferenças, pois o cão de Fuller também pode ser visto como uma metáfora. Ele, como Hagen foram impelidos pelo meio à violência. O cão branco encarna a intolerância e a violência contra os negros.
É importante destacar que a escolha das locações cria uma impressão de uma cidade suja, pobre e sem perspectiva, na qual a violência parece ser a única alternativa para a sobrevivência. Isso é de grande responsabilidade das instituições do sistema capitalista, que não conseguem lidar com estes problemas sem recorrer à força.
No filme, a família, como principal instituição, mostra-se a mais problemática, pois, estando desestruturada, não consegue cuidar do cão e da menina. A escola onde Lili estuda e os guardas da carrocinha, encarnando o papel do estado, são os mais intolerantes possíveis. Não demonstram qualquer sensibilidade para criar alternativas que não precisem utilizar a violência.
Ao fim, não faltam referências para associar Lili ao “O Flautista de Hamelin”. “Hungarian Rhapsody no. 2” é a sinfonia que ela utilizada para acalmar Hagen, em uma bela cena.
A montagem proibida
O diretor húngaro usou dois labradores gêmeos, Luke e Body, para o papel de Hagen. Dezenas de treinadores de animais ajudaram a ensaiar as cenas. “Foi uma experiência terapêutica. O filme é uma bela prova da cooperação singular entre duas espécies. E o mais extraordinário é que todos os cachorros usados vieram da Sociedade Protetora dos Animais, e no final do filme todos foram adotados”‘conta o diretor.
Em texto escrito por André Bazin, em 1956 para a revista Cahiers Du Cinéma com o título: “Montagem Proibida”, o autor discute como projetamos nos filmes sobre animais nossa consciência. O objeto do texto não é somente os filmes com animais, mas a técnica da montagem. O que ele quer mostrar é como “… A partir de exemplos surpreendentemente significativos que elas oferecem, certas leis da montagem em sua relação com a expressão cinematográfica e, mais essencialmente, sua ontologia estética”.
Ele começa a análise com o filme: No reino das Fadas (Une Fée pás comne les autres, de Jean Tourane, 1957). Para ele, é evidente que os sentimentos humanos atribuídos aos animais são, pelo menos no essencial, uma projeção de nossa própria consciência.
“Só lemos em sua anatomia ou comportamento os estados de alma que mais ou menos inconscientemente lhes atribuímos, a partir de certas semelhanças exteriores com a anatomia ou com o comportamento do homem”.
É importante citar que Bazin era um crítico católico de esquerda, mas também um idealista. Logo, ele via o cinema como uma arte que ambicionava o realismo, o filme passado na tela deveria ser entendido como uma reconstrução da realidade.
Para o crítico francês, a tela alimenta-se do fluxo e do refluxo de nossa imaginação que se alimenta da realidade à qual ela planeja “substituir”. Assim, não importa que fossem usados dois cachorros gêmeos no filme ou que tivéssemos que sinalizar para ele caminhar ou agir. O importante é que o que vemos parece um filme, mas, ao mesmo tempo, seja cinema, “a fábula nasce da experiência que a imaginação transcende”.
O texto chama-se montagem proibida, porque, para Bazin, “quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores da ação, a montagem fica proibida”. Ou seja, segundo ele, a montagem precisa unificar os elementos que foram dispersos anteriormente nas cenas. Em uma cena de perseguição, em que mostramos uma caça e caçador em planos separados, precisamos ter um momento em que isso é unificado em plano único, pois só assim teremos a “veracidade”.
Bazin vê algo, que também vejo nas obras de Fuller e Mundruczó, o mérito destes diretores não está em utilizar animais muito bem treinados, “mas posição em que foram colocados durante a filmagem; o cenário ao redor, a fantasia, o comentário já bastam para dar à postura do animal um sentido humano que a ilusão da montagem precisa e amplia de modo tão considerável que, às vezes, chega a criá-lo quase totalmente”.
Mundruczó, assim como Fuller, produziu uma importante obra para o cinema, que merece ser vista por todos.
João Diego é formado em Jornalismo e pós-graduando em cinema pela Universidade Tuiuti do Paraná.