Juventude turca se mobiliza contra os interventores de Erdogan nas universidades
O ano de 2021 começou aquecido pelos protestos dos estudantes da Universidade de Bogazici, em Istambul, contra a nomeação do reitor Melih Bulu por decreto presidencial. O nomeado é o empresário e ex-candidato do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), mesmo partido do presidente Recep Tayyip Erdogan, e também seu aliado político.
O decreto saiu no dia 2 de janeiro, sábado, e já na segunda-feira (4), um grupo de 40 estudantes começou o movimento, seguidos por funcionários e professores da universidade, bradando palavras de ordens como “Não é nosso reitor!” e “Não queremos um reitor nomeado pelo governo!”. A polícia reprimiu o protesto com brutalidade e trancou as portas da universidade, prendendo alguns estudantes.
Na terça-feira as manifestações tomaram maiores proporções, com o apoio de centenas de jovens de outras universidades e populares em várias partes do país, em solidariedade aos universitários de Bogazici e contra as tentativas do presidente de aumentar seu controle sobre as instituições de ensino.[U1]
Nesse dia a polícia atacou os manifestantes com spray de pimenta, jatos de água e tiros com bala de borracha. Na madrugada de terça para quarta (5), 36 pessoas foram presas em suas casas pela polícia pelo suposto envolvimento com a direção dos atos. Em um desses ataques[U2] conseguimos ver que foram enviados agentes de forças especiais para prender estudantes, em uma tentativa desesperada do governo de intimidar o movimento e evitar que ele se espalhe.
Há relatos de que atiradores estavam a postos para disparar na multidão. O governo e a mídia oficial continuam chamando os estudantes e manifestantes de “terroristas” sem “valores nacionais e espirituais”. Mas a repressão foi como lenha na fogueira e reacendeu o movimento estudantil em toda Turquia. O que começou com alguns jovens se tornou uma luta contra o governo Erdogan, e desde então diversas manifestações vem sendo organizadas.
A juventude é sempre a primeira a se levantar em prol das pautas mais sentidas da classe trabalhadora. Essas manifestações são o reflexo da crise do capitalismo agravada pela pandemia, e demonstram a disposição de luta contra esse governo burguês, por condições dignas de vida que nem Erdogan, nem o sistema são capazes de conceder.
O problema é o capitalismo
Nos primeiros dias de fevereiro, alguns protestos ficaram marcados pela repressão contra jovens que levantavam a bandeira LGBT. O Ministério do Interior anunciou que a polícia deteve um total de 528 pessoas durante os protestos. Algumas pessoas detidas alegaram que sofreram espancamentos e agressões sexuais dos policiais. Erdogan prometeu parar os protestos a todo custo, insistindo que não permitirá que eles se tornem um novo Gezi, o nome do parque que foi o pivô das manifestações de 2013 que quase derrubaram o governo.
Erdogan foi primeiro-ministro de 2003 a 2014, deixando o posto apenas para assumir a cadeira presidencial. Foi seu próprio partido (AKP) que apresentou o referendo constitucional de 2017, que aboliu completamente o sistema parlamentarista existente e o substituiu pelo presidencialismo, o que concedeu a Erdogan ainda maiores poderes. Os primeiros anos de seu primeiro mandato marcaram um crescimento econômico acentuado, o que permitiram a industrialização de partes atrasadas do país as custas da mão de obra barata de trabalhadores e camponeses pobres.
Esse crescimento deu certa estabilidade para seu governo até a crise econômica mundial de 2008. O regime tem se apoiado cada vez mais no crescimento especulativo e na expansão do crédito, medidas temporárias muito comumente usadas pelos capitalistas para evitar o colapso econômico. Segundo a matéria[i] sobre a dívida turca publicada em dezembro de 2020 no site Al-Monitor:
As estatísticas mostram que os empréstimos ao consumidor tiveram o maior aumento quantitativo, expandindo em 46% ou cerca de 260 bilhões de liras (US $ 34 bilhões) em 12 meses. As pessoas usaram copiosamente os empréstimos para comprar casas e carros, mas também para atender às suas necessidades de subsistência.
Dados de 2018 mostram que agora o que cresce é o desemprego, que é superior a 10% e cerca de 25% entre os jovens de 16 a 25 anos. O relato[ii] do jornalista turco Bülent Mumay publicado em novembro de 2020 no site do jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung esclarece a situação da classe trabalhadora turca:
Não se trata apenas de pão, é claro. Não podemos mais comprar carne, não porque somos todos veganos, mas por causa da crise econômica. O consumo de carne vermelha caiu 30% nos últimos 12 meses. As vendas de massas, um dos alimentos mais baratos, aumentaram 25%. De acordo com um estudo universitário, em 38 por cento das famílias não há mais dinheiro suficiente para as necessidades alimentares. Setenta por cento dos cidadãos mal conseguem sobreviver. O número de suicídios aumenta devido ao desespero. Nos últimos cinco anos de crise econômica, 1.380 pessoas deram fim à vida devido às dificuldades econômicas.
Essas são as condições vividas pela classe trabalhadora e pela juventude geradas pelas contradições de um sistema moribundo. As manifestações da juventude agora são a ponta da lança em uma luta prestes a sacudir o capitalismo turco. Podemos concordar que realmente não se trata apenas de pão. Antes da pandemia a situação política já era muito grave. É a conjuntura que se mostra insustentável para o operariado, e onde a luta de classes se acirra cada vez mais. Erdogan vem perdendo a sua base, e o descontentamento massivo só deve ser contido por sua medidas ditatoriais, mas até certo ponto.
Nem a burguesia nacional, nem a burguesia internacional
O fracassado golpe de Estado de 15 de julho de 2016, que por ter sido tão desorganizado levanta suspeitas de que foi armado pelo próprio Erdogan para implementar reformas políticas, colocou a Turquia em um estado de emergência. Segundo a BBC[iii], “107 mil servidores públicos e soldados perderam seus cargos sendo demitidos e mais de 50 mil pessoas estão presas, à espera de julgamento”.
Pelo menos 5 mil acadêmicos e mais de 33 mil professores também perderam seus empregos. A violência contra a organização de estudantes e trabalhadores se brutaliza a cada dia. Milhares de militantes de esquerda ou ativistas curdos foram perseguidos e presos, e bairros inteiros são aterrorizados por atiradores impondo toques de recolher arbitrários.
Diante disso o porta-voz do Departamento de Estado americano, Ned Price, declarou que estava “preocupado” e afirmou que “os Estados Unidos estão ombro a ombro com todos aqueles que lutam por suas liberdades democráticas fundamentais”. Exceto quando se trata de reprimir ou matar sua própria classe trabalhadora quando essa tenta exercer suas liberdades democráticas nas ruas norte-americanas.
Não importa se o governo é do Partido Republicano ou Democrata, a política de repressão é a mesma. Obama provou isso quando enviou tropas para conter as multidões enfurecidas de Ferguson, em novembro de 2014, depois que o policial Wilson Darren atirou e matou o jovem negro Michael Brown. No ano passado, em plena pandemia, milhares de americanos saíram de novo às ruas em todo país para lutar contra o racismo e a violência policial após o assassinato de George Floyd. Os manifestantes foram recebidos pelos cassetetes da polícia e da Guarda Nacional de Trump.
O imperialismo americano não tem nenhum interesse no bem estar das massas turcas, nem mesmo das americanas. Há anos, as relações diplomáticas entre EUA e Erdogan vem sendo abaladas pela tentativa dos dois países de obterem vantagem na guerra civil da Síria. Os americanos apoiam a milícia Forças Democráticas Sírias (SDF) liderada pelos curdos dos quais o governo turco consideram uma ameaça à sua segurança nacional, acusando os Estados Unidos de os armar e treinar.
Os EUA desempenham uma política de dominação mundial que, mesmo abalada pela crise do capitalismo, ainda ameaça a vida de milhões de pessoas. O país é diretamente responsável pela barbárie presenciada pelas massas trabalhadoras no oriente médio, com a desculpa de combate ao Estado Islâmico. Foi há pouco tempo que o governo americano impôs tarifas sobre as importações de aço e alumínio turcos, causando uma queda no valor da lira, a moeda turca. Isso na prática piorou a vida das massas, aumentando os preços das mercadorias enquanto seus salários eram engolidos pela inflação.
Não deve haver ilusão de que nenhum governo norte-americano moverá uma palha a favor da juventude e da classe operária turca se isso não lhe valer vários barris do petróleo sírio. Daí a necessidade de se apontar um caminho anti-imperialista e antigoverno, uma vez que apenas um governo dos trabalhadores sem patrões nacionais ou internacionais é capaz de sanar as necessidades fundamentais da classe trabalhadora sentidas no estômago.
Contra Erdogan e Bolsonaro
Uma parte do movimento contrário a nomeação do reitor Melih Bulu para a prestigiada Universidade de Bogazici usa o argumento de que ele “não é qualificado para o cargo”, já que é acusado de plagiar seus artigos e sua tese. Mas a questão não é essa. A universidade pública é usada como um instrumento da burguesia para formar e fortalecer sua ideologia reacionária, sendo toda sua produção científica voltada para seus interesses de obter lucro.
Como aprendemos com Marx e Engels (1848), os pensamentos da classe dominante são sempre os pensamentos dominantes. Não tem como haver total autonomia, ou verdadeira liberdade de escolha no sistema capitalista. A função de reitor é usar o recurso que vem para universidade que, se pública, é determinado pelos governos, para gerar pesquisas que sejam do interesse do Estado burguês e para benefício dos próprios capitalistas. Independente se o reitor é qualificado ou não, seu papel é administrar esse orçamento, ou encontrar alternativas com a iniciativa privada para garantir seus projetos, garantindo, obviamente, o rendimento das empresas investidoras.
No Brasil, as universidades também sofreram com a intervenção direta do Estado durante o período da ditadura militar, que perseguiu reitores e professores. Com a restauração da democracia burguesa, a nova Constituição de 1988 garantiu a eleição de reitores pela escolha do presidente ou governador em lista tríplice, elaborada por eleição interna. Na verdade a lista funciona mais como uma consulta, que Bolsonaro ou qualquer outro presidente pode ignorar sempre que desejar, colocando interventores mais alinhados com sua política específica em algumas ou todas as universidades e institutos federais do país.
As nomeações sem consulta de Erdogan e Bolsonaro funcionaram para evidenciar que a autonomia universitária no regime burguês é improvável. A lista tríplice brasileira que contém apenas os candidatos para reitor com a predileção da comunidade acadêmica, mas mantem o poder dos governos em aceitar ou não a indicação, não deve ser sinônimo de democracia universitária, sequer de autonomia universitária.
Desde o início do mandato, Bolsonaro corta as verbas e ataca a educação superior pública e a pesquisa científica. Seu desejo é pavimentar o caminho da privatização e, a partir de seus interventores, forçar a busca de recursos privados pela universidade, livrando o governo completamente da responsabilidade de sua manutenção. Ele pretende também abater inteiramente a besta ferida que é a democracia interna universitária, já que no início de 2020 reduziu o peso dos votos de estudantes e trabalhadores técnicos para 15% cada um, aumentado o peso dos votos de docentes para 70%.
Nós defendemos o direito de decidir o currículo, a forma e o conteúdo das aulas, e como serão usados os recursos a partir de debates dos diferentes grupos da comunidade acadêmica, com mobilização de suas forças internas, fomentando a unidade entre a juventude e os trabalhadores das universidades, e com a comunidade externa. Combatemos para que toda produção científica seja direcionada para os interesses da sociedade, e não para os lucros dos donos das patentes.
E isso só será conquistado através da luta de classes, com a organização de estudantes e trabalhadores unidos por uma educação pública, gratuita e para todos, contra os interventores e contra o governo, seguindo o exemplo da luta dos jovens turcos. Nossa batalha é por todo dinheiro necessário para a educação em todos os níveis, todo dinheiro necessário para a pesquisa, pelo acesso universal, pelo fim dos vestibulares, e que todos que estudam e trabalham nas universidades tenham controle desse orçamento
Por uma direção revolucionária e socialista
Apenas em 2020 foram nomeados 27 reitores pelo presidente. A indicação de aliados políticos para cargos em universidades não é uma política nova do governo, principalmente depois da tentativa de golpe, quando Erdogan concedeu a si mesmo o poder de trocar reitores e diretores das universidades públicas. Um provérbio turco diz que “um lago se forma gota a gota”. A nomeação de Bulu foi a gota d’água que ajudou a inundar o país com o desgosto da classe operária.
Os trabalhadores e a juventude turca têm um histórico de lutas que, se não fosse pela falta de uma direção verdadeiramente revolucionária e com os métodos corretos, o capitalismo turco já teria sido derrubado. Assim como no Brasil, a Turquia foi palco de manifestações massivas no final de maio de 2013.
O ano de 2015 ficou marcado por greves radicais dos trabalhadores da metalurgia, que fizeram com que os patrões cedessem às suas condições. Em 2017, a “Marcha da Justiça” levou milhares às ruas contra as demissões, prisões políticas e mudanças de leis de Erdogan, que endurecia seu regime após a tentativa de golpe.
Em 2019, a onda revolucionária também chega na Turquia, onde a classe trabalhadora enfrenta a repressão da polícia para marchar no dia do trabalhador. 2020 novamente marcou a luta dos trabalhadores metalúrgicos por melhores negociações salariais. A perda de empregos e o agravamento da pobreza, agravados pelo coronavírus, foram enfrentados com greves e protestos, à medida que os trabalhadores começaram a se voltar contra o governo.
As condições postas pelo capitalismo turco movimentam o operariado e a juventude, que já provaram que não estão dispostos a pagar pela crise desse sistema. É necessária a construção de um partido revolucionário e socialista capaz de aglomerar os quadros mais avançados da luta de classes, e direcionar toda a insatisfação dessa juventude e da classe trabalhadora contra o sistema que os oprime, com base nos métodos do marxismo.
Vídeos:
[i] https://www.al-monitor.com/pulse/originals/2020/12/turkey-erdogan-akp-alarming-surge-consumer-corporate-debt.html
[ii] https://www.faz.net/aktuell/feuilleton/brief-aus-istanbul/in-der-tuerkei-koennen-sich-menschen-kein-brot-mehr-leisten-17037834-p2.html
[iii] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-44599658
Outras referências
https://www.marxist.com/turkey-student-protest-rector.htm
https://www.aljazeera.com/news/2021/2/6/turkeys-student-protests-new-challenge-for-erdogan
[U1]https://twitter.com/komiteler/status/1347506971969261569?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1347506971969261569%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es1_c10&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.marxist.com%2Fturkey-student-protest-rector.htm
[U2]https://twitter.com/selingirit/status/1346765210351259648?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1346765210351259648%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es1_c10&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.marxist.com%2Fturkey-student-protest-rector.htm