“Metaforicamente, o menino é mais um urubu entre tantos”, diz artista sobre obra censurada
Criador da novela gráfica ‘Castanha do Pará’ e ganhador do Jabuti em 2017, mais importante prêmio literário do Brasil, Gidalti ganhou destaque nacional recentemente quando teve um desenho seu retirado de uma exposição, após várias reclamações de policiais militares e apoiadores da PM.
A ilustração é a capa do livro “Castanha do Pará” foi removida da exposição em um shopping localizado na Av. Augusto Montenegro, em Belém. A imagem retrata um garoto com cabeça de urubu escapando de um policial.
É interessante analisar que o choque provocado nos policiais deve-se à situação na qual o PM é retratado. A cena é evidentemente covarde. Um homem adulto, fardado, com um cassetete levantado contra um menino desarmado que foge. Mas a boa arte é capaz de muito mais. O garoto em sua fuga realiza uma acrobacia, ou mesmo um passo de dança, um movimento que sintetiza a destreza, quase uma arte daquele que vive à margem e para quem a fuga da repressão é parte da vida. A beleza concentra-se naquele que foge, enquanto que naquele que persegue, que ameaça, que tenta bater, vê-se apenas a rudeza. O policial é estático, duro, o avesso da própria beleza do garoto.
Na composição, as cores são vivas, mas as partes mais escuras formam uma oposição, o policial com cassetete e a cabeça de urubu. Além disso, as frutas saltam do quadro e nos coloca dentro da imagem, a perspectiva da imagem nos coloca dentro do quadro.
A polícia parece ter entendido muito bem toda a imagem, que em seu silêncio fala sobre a realidade cotidiana de Belém. Os protestos devem-se, sem dúvida, porque uma boa obra de arte é capaz de dizer muito sobre o que não querem que seja dito.
A seguir publicamos uma breve a entrevista feita por João Diego com o autor, a quem parabenizamos pela obra. As suas respostas são muito interessantes. Mas é necessário ressaltar uma pequena divergência quanto a uma de suas respostas, cuja relevância é das maiores.
Ao responder sobre a relação desta censura com outros casos, Gidalti diz que a sua “arte não é tão polêmica e provocadora como a apresentada no Queer museu”. Aqui precisamos dizer que, embora não esteja necessariamente na intenção do autor gerar tamanha polêmica, uma obra de arte que é capaz de, num retrato, trazer a tona uma complexa gama de conflitos cotidianos, de contradições presentes nas relações sociais de um tempo e um lugar, toda obra com estas características é potencialmente polêmica. E sua obra, particularmente, é das mais polêmicas. Não há prova maior do poder de um retrato que o medo que impresso no braço armado do Estado. Nada mais interessante que aqueles que portam armas de fogo, pagos pelo Estado, demonstrando medo de um “desenho”.
Temos aqui uma pequena demonstração do papel social que pode cumprir uma obra de arte de valor, inclusive a despeito das posições ou intenções iniciais de seu autor. E, mais que isso, do papel que podem cumprir artistas que, além de ter o necessário e insubstituível talento, tomem plena consciência de tudo isso.
Segue a entrevista:
Gidalti, antes de tratarmos diretamente do assunto da censura de sua obra, poderia falar sobre como surgiu à ideia da HQ?
A ideia surge a partir de um conto, “Adolescendo Solar”, de Luizan Pinheiro. Queria falar sobre algo que transparece verdade e intimidade com o tema. A realidade do menino que vaga pelo Ver-o-peso (nome do mercado) remete muito a fatos que pude ver em primeira pessoa em Belém, e esse conto despertou minha vontade de transformar o enredo em algo gráfico e com minha leitura dos fatos. Após muita pesquisa e experimentações, senti que o que realmente me motivava não era somente a parte visual e sim contar minhas próprias historias dentro contexto amazônico urbano que me é familiar. Então, decidi entrar pra valer na produção de uma HQ autoral.
Há quanto tempo você trabalhava nessa proposta?
Trabalhei aproximadamente três anos, me dividindo entre a docência e a produção do álbum.
Falando um pouco sobre história em HQ, tem gente que pensa que HQ é só super-herói, mas não é só, certo?
A quantidade de temas e estéticas que existem nas histórias em quadrinhos é imensa. Países como Franca, Bélgica, Estados Unidos e Japão, por exemplo, possuem uma relativa identidade no que se refere a HQ. No Brasil, em regra, ainda associamos quadrinhos a super-herói ou conteúdo infantil, como turma da Mônica e Walt Disney ou Mangá. No entanto, além destes, existem muitas outras propostas estéticas dentro do gênero e essas são destinadas aos mais diversos públicos. Vivemos um momento interessante no cenário nacional, onde propostas menos populares estão ganhando um bom espaço no mercado editorial e assim a noção do gênero se alarga.
Quando eles retiraram a obra você tentou solicitar para recolocar? Os responsáveis disseram o quê?
Não solicitei para recolocar, pois isso é função da curadoria e não me sinto a vontade para gerar essa demanda. O espaço e a curadoria se manifestaram formalmente em nota direcionada à imprensa, associando a censura à exposição de violência às crianças. Por meio dos bastidores, eu recebi informações que confirmavam que o real motivo era a pressão de grupos radicais e simpatizantes para com a polícia militar.
Você relaciona essa censura com outros casos que ocorreram pelo país, como Queer museu?
De certa forma sim, pois pessoas estão colocando suas percepções morais acima da liberdade e isso é perigoso. Há ainda um contexto de ignorância, justificativas rasas e autoritárias sobre o que pode e não pode no universo artístico. Mas penso que meu caso seja ainda mais bizarro, pois minha arte não é tão polêmica e provocadora como a apresentada no Queer museu, o que aumenta ainda mais nossa necessidade de alerta, pois se a censura está muito parecida com o que ocorria na ditadura militar, onde se via conspiração e ilegalidade em tudo.
Na imagem o policial segura uma cassetete, ao mesmo tempo o garoto foge como um super-herói, com malandragem, acrobacia, essa era sua intenção? Mostrar a PM como uma estátua repressora e o moleque como malicia da sobrevivência?
O foco da questão não é a polícia militar. Usaram a capa como oportunidade para exporem seu autoritarismo e poder de intimidação. Cabe ao leitor interpretar as imagens e os textos. Quem absorve a obra a partir de um ponto de vista sensível e de boa fé não age como essa minoria ignorante e carente de atenção.
O lugar qual a imagem é retratada existe mesmo? Qual o motivo de escolher esse lugar?
Sim, o lugar existe. É o tradicional mercado do Ver-o-Peso, em Belém do Pará. O local foi escolhido, pois é possível ver muitos contrastes sociais e estéticos.
Como surgiu essa ideia de um garoto com cabeça de urubu?
No mercado do Ver-o-Peso é possível encontrar muita sobra de alimentos deixados pelos feirantes. Isso faz com que essa região fique cercada por muitos urubus, que sobrevivem de restos de frutas, carnes e etc. Metaforicamente, o menino é mais um urubu entre tantos.
PS: Talvez nada seja mais afrontoso à PM do que a forte sensação de que, após o retrato, o garoto conseguiu fugir ileso. Ou seja, ele venceu. Um daqueles breves ensaios de uma vitória ainda maior que eles não querem ver brotar na imaginação do povo trabalhador. Um destes ensaios que a boa arte pode propiciar.