Resposta ao Bandeira Negra: Marxismo ou anarquismo? – Uma carta aberta aos anarquistas que pensam (Parte 1)
Nesse artigo, que publicaremos em quatro partes, Alan Woods debate com o movimento Bandeira Negra, sobre as diferenças entre as ideias anarquistas e marxistas.
Fui recentemente informado que Bandeira Negra, um grupo anarquista do Brasil, publicou uma resposta ao meu artigo “Marxismo e Anarquismo”, de janeiro de 2012. É evidente que acolhemos as críticas amistosas de qualquer parte do movimento internacional dos trabalhadores. Isso inclui camaradas que aderem aos pontos de vista opostos ao marxismo, o que o anarquismo sempre foi.
Um debate amistoso pode nos ajudar a clarificar nossas ideias e, assim, fortalecer o movimento revolucionário. Considero, no entanto, que as teorias do marxismo, que resistiram à prova do tempo, são suficientemente fortes para refutar qualquer crítica, o que demonstrarei neste artigo.
Contudo, a condição prévia para um debate saudável é uma abordagem honesta do adversário. Meu artigo “Marxismo e Anarquismo” é descrito como “um festival de falácias e falsificações históricas”. Demonstraremos onde residem as falácias e as falsificações históricas e deixaremos ao leitor decidir se as mentiras e falsificações se encontram em meu artigo ou nas afirmações de meus críticos.
Tem o anarquismo uma teoria?
Bandeira Negra expressa grande indignação pelo fato de eu alegadamente negar que os anarquistas têm uma teoria. Na verdade, nunca fiz tal declaração. Ela é, como a maioria das outras declarações a mim atribuídas por nosso crítico, um produto de sua fértil imaginação.
Ele escreve:
“O autor começa falando da importância teórica, como se anarquistas negassem isso!
“Importante lembrar que Mikhail Bakunin reconheceu “O Capital” como uma das melhores obras já feitas e até se dispôs a traduzí-lo. Proudhon, socialista federalista que inspirou o anarquismo, a quem o texto cospe em cima, teve sua obra ‘O Que é a Propriedade?’ considerada um estudo científico pelo próprio Marx”
Estou muito consciente de que o anarquismo se baseia em uma teoria. Meu problema com ela é que é uma teoria muito fraca, cheia de contradições; uma bagunça de velhas ideias tomadas dos socialistas utópicos, particularmente Proudhon, misturada com noções aventureiras e sectárias introduzidas por Bakunin. O verdadeiro pai dessas ideias foi de fato Proudhon.
Apesar da tentativa de Bandeira Negra de encontrar uma citação que tenha por objetivo provar que Marx respeitava as ideias de Proudhon, temo dizer que devemos denunciar esta falácia. Longe de elogiar as ideias confusas de Proudhon, Karl Marx descreveu a maior obra de Proudhon, “Filosofia da Miséria”, como “pobre em geral, se não muito pobre… sua filosofia é absurda – ele produz uma filosofia absurda porque não compreendeu as condições sociais atuais”. De fato, Marx chegou a escrever uma devastadora crítica da obra de Proudhon em “Miséria da Filosofia”.
A debilidade teórica do anarquismo – que Marx expôs com clareza – está precisamente em que repete os equívocos dos socialistas utópicos e, em particular, de Proudhon, o expoente do socialismo pequeno-burguês por excelência. O programa de Bakunin (na medida em que existisse) era uma mistura superficial de ideias tomadas de Proudhon, Saint-Simon e outros socialistas utópicos. Acima de tudo, ele pregava a “abstenção do movimento político”: uma ideia que também tomou de Proudhon.
A verdade é que marxismo e anarquismo são ideologias completamente opostas e mutuamente excludentes. O primeiro é uma teoria científica e uma política revolucionária que refletem os interesses de classe do proletariado. O marxismo se baseia na classe trabalhadora, a única classe genuinamente revolucionária da sociedade. Em contraste, o anarquismo é uma doutrina confusa e a-científica que encontra sua base de classe na pequena burguesia e no lumpemproletariado. Mas não é preciso aceitar minha palavra, vejamos o que Bakunin tinha a dizer sobre essa questão.
Qual era a posição de Bakunin com relação à classe trabalhadora? A partir de uma carta a La Liberté, escrita por Bakunin em 1872, fica muito claro que ele sequer aceita que o proletariado é uma classe e até se refere ao governo aristocrático dos trabalhadores de fábrica sobre o proletariado rural, isto é, o proletariado urbano sobre o campesinato:
“Nós, anarquistas revolucionários que verdadeiramente queremos plena emancipação popular, vemos com repugnância outra expressão neste programa: a designação do proletariado, os trabalhadores, como uma classe e não como massa. Você sabe o que isso significa? Significa nem mais nem menos o governo aristocrático dos trabalhadores de fábrica e das cidades sobre os milhões que constituem o proletariado rural que, na expectativa dos socialdemocratas alemães, se tornarão de fato os súditos do seu chamado Estado Popular. ‘Classe’, ‘poder’… ‘estado’ são três termos inseparáveis, cada um pressupondo os outros dois, e que se reduzem a isto: a sujeição política e a exploração econômica das massas” (ênfase minha).
Na mesma carta ele se refere à “minoria aburguesada” dos trabalhadores urbanos:
“Essa mesma lógica leva os marxistas direta e fatalmente ao que chamamos de socialismo burguês e à conclusão de um novo pacto político entre os burgueses que são ‘radicais’, ou que são forçados a se tornar, e a ‘inteligente’ e ‘respeitável’ minoria aburguesada dos trabalhadores urbanos em detrimento das massas proletárias, não somente do país como também das cidades”.
“Espontaneidade” e a luta política
Uma das principais características que, na prática, sempre caracterizaram todas as tendências anarquistas, começando com Bakunin, foi precisamente a recusa da política e dos partidos políticos. Esse fato bem conhecido é negado de forma indignada por nosso crítico anarquista. Na primeira parte de sua diatribe contra o marxismo, meu crítico também nega categoricamente que o anarquismo seja “espontâneo”. Bandeira Negra começa afirmando que associo anarquismo à “desorganização, algo semelhante à gente perdida correndo em círculos e sem saber para onde ir, sem propostas políticas claras. Isto é obviamente falso”.
Mas espere um minuto, meu amigo. Visto que você está tão ansioso em reivindicar as teorias de Bakunin, o pai-fundador do anarquismo, e visto que você insiste em que leiamos suas obras, vamos ver o que ele tem a dizer sobre a questão da “espontaneidade”:
Em “Socialismo sem Estado: Anarquismo”, uma de suas obras fundamentais [sem data, mas provavelmente de 1873], Bakunin insiste que “a ação espontânea de massas é tudo”:
“Numa revolução social, que em tudo é diametralmente oposta a uma revolução política, as ações dos indivíduos dificilmente contam, enquanto a ação espontânea das massas é tudo” (ênfase minha).
Acredito que essas palavras são tão claras que mesmo Bandeira Negra não terá muita dificuldade para entendê-las. Em apenas duas frases Bakunin elimina todas as “revoluções políticas”, isto é, toda luta por demandas políticas, toda revolução que vise mudar a ordem política da sociedade. Em vez disso, ele apela por uma “revolução social” pura, isto é, uma que instantaneamente varra para longe todas as classes e que estabeleça imediatamente a sociedade anarquista onde não haverá nem poder político, nem estado, nem opressor e oprimido.
Qualquer coisa menos do que isto deve ser rejeitado com desprezo como reformismo miserável – algo que é “diametralmente oposto” ao ideal anarquista de uma “revolução social”. Disso se deduz que a luta por demandas democráticas e a luta dos trabalhadores por demandas salariais e melhores condições devem ser rejeitadas porque não levam à derrubada imediata do capitalismo e de seu estado.
Também se deduz que a luta política, a participação nas eleições, a luta por reformas nos campos da saúde, educação, melhores pensões, a limitação da duração da jornada de trabalho, os direitos das mulheres etc. não são apenas inúteis, mas também prejudiciais, visto que desviam a atenção das massas para longe da luta real – da “revolução social”.
Na carta a La Liberté, Bakunin diz o seguinte com relação a conseguir candidatos eleitos aos parlamentos burgueses:
“Tal é o significado das candidaturas dos trabalhadores aos parlamentos dos estados existentes e da conquista do poder político. Não está claro que a natureza popular de tal poder nunca será outra coisa além de uma ficção? Obviamente será impossível para centenas ou mesmo dezenas de milhares ou de fato somente alguns milhares exercerem este poder efetivamente. Necessariamente terão que exercitar o poder por procuração, confiar este poder a um grupo de homens eleitos para representá-los e governá-los… Depois de um breve momento de liberdade ou de euforia revolucionária, estes novos cidadãos de um novo estado despertarão para se encontrarem novamente como os peões e as vítimas dos novos agrupamentos de poder…”.
Vemos aqui como a teoria anarquista é abstrata na prática. A partir de uma avaliação da natureza limitada da democracia burguesa eles vão ao outro extremo. Aqui é o poder do estado como tal, e não os interesses de classe a que ele serve, que é apresentado como causador de traição ou opressão. De acordo com Bakunin, apenas por ocupar o cargo, independentemente do contexto, de qual classe está fazendo pressão etc., você se transforma em um opressor. Os anarquistas rejeitam a participação nas eleições. Mas a classe trabalhadora lutou durante muito tempo para ganhar o direito de voto e outros direitos democráticos contra a resistência feroz da classe dominante. Entendemos que essas conquistas por si mesmas não podem resolver os problemas fundamentais da sociedade e da classe trabalhadora. No entanto, o problema fundamental não está na própria democracia representativa, mas no poder econômico da burguesia sobre o parlamento – caso contrário, em nosso sistema, os capitalistas também acabariam sendo oprimidos por seus representantes parlamentares. A luta por demandas democráticas desempenhou um papel muito importante no desenvolvimento da consciência e da militância da classe trabalhadora e das massas exploradas em geral.
Os trabalhadores do Brasil entendem isso perfeitamente bem. Não é indiferente para a classe trabalhadora termos o direito de greve e de manifestação, ou o direito de votar nas eleições. Enquanto o capitalismo continuar a existir, a classe trabalhadora é forçada a aproveitar todas as possibilidades legais para promover sua causa. Recusar-se a participar nas eleições seria o mesmo que entregar o poder político aos partidos de nossos inimigos de classe. De que forma a abstenção poderia promover os interesses da classe trabalhadora é um mistério que somente um anarquista pode esperar compreender.
Os marxistas sempre entenderam que a participação na atividade parlamentar contém muitos riscos e perigos. A burguesia desenvolveu ao nível de uma fina arte a corrupção sistemática dos representantes dos trabalhadores no Parlamento. Isto é uma verdade incontestável. Mas, da mesma forma, os patrões desenvolveram todos os tipos de formas de corrupção dos representantes dos trabalhadores nas fábricas, nos conselhos locais e em todos os outros níveis. Devemos nos recusar a eleger representantes, por exemplo, para um comitê de greve por medo de que possam ser corrompidos pelos patrões? Essa linha da argumentação deve logicamente levar à recusa de organizar os trabalhadores, em absoluto.
Marx sobre ação política e organização
É isto que Marx tinha a dizer quanto à rejeição da ação política e da organização:
“N.B. sobre o movimento político: O movimento político da classe trabalhadora tem como objetivo, naturalmente, a conquista do poder político pela classe trabalhadora e, para isto, é naturalmente necessário que previamente se tenha desenvolvido até certo ponto uma organização da classe trabalhadora surgida, por sua vez, das lutas econômicas da mesma.
“Mas, por outro lado, todo movimento em que a classe trabalhadora se apresenta como classe contra as classes dominantes e tenta vencê-las por meio da pressão exterior é um movimento político. Por exemplo, a tentativa em uma fábrica particular ou mesmo em uma indústria particular de obrigar os capitalistas a reduzir a jornada de trabalho mediante greves etc. é um movimento puramente econômico. Por outro lado, o movimento que tem por objetivo fazer aprovar uma lei que estabeleça a jornada de oito horas etc. é um movimento político. E, desta forma, a partir dos distintos movimentos econômicos dos trabalhadores surge em todas as partes um movimento político, isto é, um movimento da classe, que tem por objetivo impor seus interesses de forma geral, sob uma forma que possua uma força de compulsão para toda a sociedade. Se esses movimentos pressupõem certo grau de organização, são, por sua vez, um meio para o desenvolvimento desta organização.
“Ali onde a classe trabalhadora não está ainda suficientemente avançada em sua organização para empreender uma campanha decisiva contra o poder coletivo, isto é, o poder político das classes dominantes, deve-se, de todas as formas, treinar para isso mediante uma agitação contínua e uma atitude hostil com relação à política das classes dominantes. Do contrário, continuará sendo um joguete em suas mãos, como o demonstrou a revolução de setembro na França, e como também o demonstra até certo ponto o jogo dos senhores Gladstone e Cia., inclusive na atualidade” (Marx a Friedrich Bolte, 23 de novembro de 1871, publicada em Marx and Engels Correspondence; International Publishers, 1968).
Reformismo ou revolução?
“Ou seja, a diferença entre a Socialdemocracia e o Marxismo sempre foi muito tênue. A divergência se encontrava única e exclusivamente em como o Partido deveria conquistar o aparato do Estado. Mas uma vez em seu poder, a transformação da sociedade capitalista seria AOS POUCOS, diferente da saída anarquista que, como disse Bakunin, ‘enquanto a teoria político-social dos socialistas antiautoritários ou anarquistas os conduz de modo infalível a uma ruptura completa com todos os governos, com todas as formas de política burguesa, e não lhes deixa outra saída senão a revolução social, a teoria adversa, a teoria dos comunistas autoritários e do autoritarismo científico, atrai e imobiliza seus partidários, a pretexto de tática, em compromissos incessantes com os governos e os diferentes partidos políticos burgueses, quer dizer, leva-os direto ao campo da reação’ [Estatismo e Anarquia]”
Nosso amigo conclui triunfalmente: “O reformismo não é uma negação do marxismo: é seu filho”. Ele tenta retratar Marx e Engels como reformistas, mas a forma como o faz revela seu método de citação completamente desonesto. Bandeira Negra fornece esta breve citação dos “Princípios do Comunismo” de Engels, escrito entre outubro e novembro de 1847: “Os comunistas, portanto, têm de continuamente tomar partido pelos liberais burgueses face aos governos”.
Como costumam fazer, a citação é retirada do contexto, a frase não está completa e a fonte não é fornecida. Vamos ver o que Engels realmente disse. Em resposta à questão número 25, “Qual a atitude dos comunistas face aos demais partidos políticos de nosso tempo?”, Engels explica o seguinte com relação à Alemanha:
“Na Alemanha, finalmente, só agora está iminente a luta decisiva entre a burguesia e a monarquia absoluta. Como, porém, os comunistas não podem contar com uma luta decisiva entre eles próprios e a burguesia antes que a burguesia domine, o interesse dos comunistas é ajudar a levar os burgueses ao poder tão depressa quanto possível para, por sua vez, derrubá-los o mais depressa possível. Os comunistas têm, portanto, de continuamente tomar partido pelos burgueses liberais face aos governos e se precaverem de partilhar as autoilusões dos burgueses ou de dar crédito às suas afirmações sedutoras sobre as consequências benéficas da vitória da burguesia para o proletariado. As únicas vantagens que a vitória da burguesia trará aos comunistas consistirão:
“(i) em diversas concessões que facilitarão aos comunistas a defesa, discussão e propagação de seus princípios e, com isso, a união do proletariado numa classe estreitamente coesa, preparada para a luta e organizada;
“(ii) na certeza de que, no dia em que os governos absolutos caírem, chegará a hora da luta entre os burgueses e os proletários. Desse dia em diante, a política partidária dos comunistas será a mesma que naqueles países em que já domina a burguesia”.
Como se pode ver, o fragmento de uma frase em itálico acima é o que os nossos amigos anarquistas citam, transformando o seu significado em seu oposto, afirmando que Engels estava defendendo o apoio aos liberais burgueses para sempre. Na verdade, ele está simplesmente afirmando que, na Alemanha de 1847, como a luta era contra a aristocracia feudal, os comunistas apoiariam a burguesia contra o estado feudal, após o que a luta contra a burguesia começaria. Mas por que se preocupar com a citação completa quando uma citação parcial, tirada do contexto, é muito mais útil para distorcer o que Engels disse?
Mas retornemos à situação atual e aos reformistas atuais. Nossa crítica aos reformistas não é porque eles lutam por reformas, mas porque não lutam por reformas; eles capitulam à pressão da burguesia e realizam contrarreformas, reduzindo os padrões de vida para sustentar o sistema capitalista, particularmente no atual período de crise capitalista. A experiência do governo do PT no Brasil ou do governo de Tsipras na Grécia é suficiente para ilustrar este ponto. É elementar que, se formos sérios na conquista da classe trabalhadora para as ideias revolucionárias, devemos nos colocar na vanguarda de todas as lutas para defender e melhorar os padrões de vida, mesmo os mais básicos.
As demandas imediatas das massas não se restringem às questões econômicas, mas inevitavelmente passam para o terreno da política. Aqui, os argumentos tradicionais dos anarquistas entram em conflito direto com os interesses da classe trabalhadora. Quer você goste ou não, até que o capitalismo seja derrubado questões importantes são decididas pelo Parlamento. São aprovadas leis que diretamente afetam as vidas e as condições dos trabalhadores, dos desempregados, dos enfermos, dos velhos, dos jovens e das mulheres. Devemos abandonar a luta cotidiana para mudar as leis no interesse de nossa classe?
Tomemos a questão da votação. Nos dias de Marx os trabalhadores não tinham o direito de votar, e assim a questão da votação era uma questão extremamente importante para a classe trabalhadora. Qual foi a atitude de Bakunin a respeito dessa importante questão?
Aqui está o que ele escreveu, em 1870, em “On Representative Government and Universal Suffrage [Sobre o Governo Representativo e o Sufrágio Universal]”:
“Se um governo composto exclusivamente por trabalhadores for eleito amanhã por sufrágio universal, esses mesmos trabalhadores, que hoje são os mais dedicados democratas e socialistas, amanhã se tornariam os aristocratas mais determinados, os adoradores abertos ou secretos do princípio da autoridade, exploradores e opressores”.
E ele acrescenta mais tarde no mesmo texto:
“O governo representativo é um sistema de perpétua hipocrisia e falsidade. Seu sucesso reside na estupidez do povo e na corrupção da mente pública.
“Isso significa que nós, os socialistas revolucionários, não queremos o sufrágio universal – que preferimos o sufrágio limitado ou um único déspota? De forma alguma. O que defendemos é que o sufrágio universal, considerado em si mesmo e aplicado em uma sociedade baseada na desigualdade econômica e social, não será nada mais que uma fraude e uma cilada para o povo; nada além de uma mentira odiosa dos democratas-burgueses, o caminho mais seguro para consolidar sob o manto do liberalismo e da justiça a dominação permanente do povo pelas classes possuidoras, em detrimento da liberdade popular. Negamos que o sufrágio universal possa ser usado pelo povo para a conquista da igualdade econômica e social. Ele deve ser sempre e necessariamente um instrumento hostil ao povo, no qual de fato se apoia a ditadura da burguesia”.
Bakunin rejeita a participação nas eleições, embora diga que não se opõe “totalmente” à luta pelo sufrágio universal. O que significa este enunciado do tipo desafio da Esfinge? Onde fica a posição de lutar pelo direito ao voto se, então, defendemos a posição de não votar nas eleições? Mas, diz Bakunin, quando os líderes reformistas são eleitos ao parlamento eles sempre traem. Sim, isto é certamente verdadeiro. Trotsky explica que a traição é inerente ao reformismo, e toda a história mostra que este é o caso. Mas isto não esgota a questão de forma alguma. Nós, os marxistas, não somos adeptos da política parlamentar, mas também não acreditamos que seja possível descartar o parlamentarismo simplesmente ignorando as eleições.
A luta eleitoral é apenas mais uma frente da luta de classes. Recusando-nos a participar nesta luta apenas entregamos o poder político em uma bandeja nas mãos de nossos inimigos. De que forma isso serve à causa do socialismo e da classe trabalhadora é impossível de se dizer.
Certamente estamos contra o reformismo, mas não nos opomos a uma participação enérgica nas lutas dos trabalhadores e da juventude por demandas que tendam a melhorar suas vidas sob o capitalismo, porque somente através dessas lutas eles podem adquirir a necessária compreensão da natureza do capitalismo e do estado, da necessidade de se organizarem e da necessidade de uma mudança fundamental na sociedade: a necessidade de uma revolução socialista. A luta pelos direitos democráticos é extremamente importante não só como uma escola de luta, mas também como uma forma de elevar a consciência dos trabalhadores e suas organizações a um nível mais alto.
Tomemos um exemplo da Revolução Russa. A revolução foi travada com base nas três seguintes palavras de ordem: paz, pão e terra. Se analisarmos o conteúdo dessas palavras de ordem veremos, à primeira vista, que não há nada de revolucionário nelas. Também não contêm qualquer elemento de socialismo, e muito menos de anarquismo. Teoricamente, todas essas coisas podiam ser alcançadas sob o capitalismo. Mas na realidade concreta da Rússia de 1917, “paz, pão e terra” somente seriam alcançados através da derrubada do capitalismo e da conquista do poder soviético.
Somente ao tomar essas palavras de ordem e ao ligá-las à ideia do poder soviético, os bolcheviques poderiam ser bem-sucedidos em unir milhões de trabalhadores e camponeses sob a bandeira revolucionária. No caso do Brasil, a luta contra a ditadura nos tempos mais recentes era uma questão fundamental para a classe trabalhadora. Era necessário e correto lutar pelos direitos democráticos e contra a ditadura? Aqui, a importância da luta política fala por si mesma.
Em 2013, o Brasil viveu um movimento de massas de proporções inigualáveis. Como começou esse movimento? Começou por uma luta contra o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo. Sem dúvida, nosso amigo anarquista considera que isso é meramente uma demanda reformista e indigna da atenção dos revolucionários sérios. No entanto, de fato, a luta por essa limitada demanda rapidamente se transformou em um movimento de massas com implicações revolucionárias.
Todos esses exemplos mostram como a luta por demandas elementares sobre questões imediatas (“reformas”) serve para levar à frente o movimento dos trabalhadores, conduzindo finalmente o proletariado a conclusões revolucionárias. Mas para o nosso amigo anarquista este é um livro fechado com sete cadeados. Ele levantou uma muralha chinesa separando a luta por reformas da luta pela revolução, e não pode ver a relação dialética entre as duas.
Que atitude deveríamos ter tomado com relação a esse movimento e essa demanda? A lógica do que diz nosso crítico anarquista é que não devemos sujar nossas mãos com reformas tão triviais como a redução das tarifas de ônibus. Melhor seria proclamar a necessidade de uma revolução anarquista. Mas, na realidade, a linha entre a luta por reformas e a luta pela revolução socialista não é tão clara quanto nosso amigo imagina.
A posição apresentada por nosso crítico negligencia o fato de que a classe trabalhadora em geral não aprende dos livros e discursos, mas da própria vida. Os trabalhadores aprendem da experiência prática, particularmente da experiência prática da luta de classes. É somente através da luta cotidiana para avançar sob o capitalismo que a classe trabalhadora adquire a experiência suficiente para se elevar ao nível de tirar conclusões revolucionárias. Se nosso amigo anarquista não pode entender esse fato elementar, sinceramente sentimos muito por ele.
Um ligeiro mal-entendido?
A próxima afirmação feita por Bandeira Negra é tão extraordinária que faz qualquer pessoa esfregar os olhos de espanto para ver se está lendo corretamente. Ele escreve: “Quando as várias experiências revolucionárias de caráter libertário através da história são estudadas, a avaliação de um programa político sério é inegável, alinhado aos interesses da classe trabalhadora e portador de uma disciplina revolucionária”.
Aí o temos. Nosso crítico sustenta que através da história os anarquistas estiveram de fato a favor de formar um partido revolucionário, baseado na “avaliação de um programa político sério, alinhado aos interesses da classe trabalhadora e portador de uma disciplina revolucionária”. A tudo isto dizemos amém!
Se tudo isso é verdade, fica difícil de se ver todo o alarido durante os últimos 150 anos. Parece que as diferenças entre o marxismo e o anarquismo foram somente o produto de um infeliz mal-entendido. Essa é realmente uma boa novidade! Mas será verdade? Para começar, quando as “várias experiências revolucionárias de caráter libertário através da história” são estudadas, a impressão duradoura é de autocontradição e de ecletismo dentro do anarquismo, e não de “um programa político sério”.
Devemos assinalar que a terminologia utilizada por Bandeira Negra é confusa ao extremo. Qual o significado de “a avaliação de um sério programa político”? Aqui estamos brincando de um jogo de esconde-esconde com as palavras. Possui esse famoso “partido político anarquista” um programa político, sim ou não? Se a resposta for sim, é difícil de se ver como essa concepção difere da dos marxistas. Mas, como todos os argumentos utilizados por Bandeira Negra, essa é uma fórmula ambígua, calculada para confundir e não para esclarecer o assunto.
O que é um partido político?
Um partido é uma organização voluntária baseada em princípios definidos e em um programa. A natureza do partido será em grande parte determinada por essas questões de princípio e programa. Um partido reformista basear-se-á naturalmente em princípios reformistas e na política reformista, isto é, uma política concebida fundamentalmente para defender o sistema capitalista ao introduzir certas modificações secundárias. Um partido marxista, pelo contrário, está baseado no objetivo estratégico de derrubada do capitalismo, e seu programa e política serão determinados por este objetivo.
E os anarquistas? Eles se opõem à ideia de organizar os trabalhadores em um partido revolucionário porque tal partido inevitavelmente leva à liderança burocrática e hierárquica. Eles explicam que os partidos são ruins, mas são ineptos para explicar como uma revolução ocorre sem um. Quando se lhes pede que ofereçam uma alternativa concreta, eles nunca oferecem uma resposta direta. Qual a alternativa que eles propõem? Nenhuma organização, em absoluto? Meu crítico indignadamente nega qualquer ideia semelhante.
Ele diz:
“Por fim, o autor se dispõe a divagar sobre a importância do Partido para a experiência política da classe, como se anarquistas rejeitassem isso”
Então, em que pé estamos? Você aceita ou rejeita a necessidade de criação de um partido revolucionário? Sobre esta questão nosso amigo se contorce e finalmente surge com uma formulação que, imagina ele, vai resolver uma contradição insolúvel da teoria anarquista:
“Tanto a organização de massas (movimentos sociais e sindicatos) quanto a organização especificamente anarquista são capazes de desenvolver estratégias e táticas, aprender com a experiência de lutas e se desenvolver rumo ao Socialismo. A hierarquia e a autoridade concentrada em uma ‘elite intelectual superior’ não tem a ver com isso, mas com desejo por poder”.
Nosso amigo anarquista procura confundir a questão. Acontece que ele não quer um partido, mas somente uma “organização especificamente anarquista”. Esta terá uma estrutura, um programa (mesmo um programa político) e se baseará em uma teoria definida. Ela será capaz de “desenvolver estratégias e táticas, aprender da experiência das lutas e evoluir para o socialismo. Mas não terá uma hierarquia e autoridade concentrada em uma “elite intelectual superior”. Desnecessário dizer que não terá nada a ver com qualquer “desejo de poder”.
É difícil tirar algum sentido dessa barafunda de ideias contraditórias, mas faremos o nosso melhor. Em primeiro lugar, salientamos que, como explicado por Bandeira Negra, não somente a “organização especificamente anarquista” como também a organização de massas (movimentos sociais e sindicatos) são capazes de “desenvolver estratégias e táticas, aprender da experiência de lutas e se desenvolver rumo ao socialismo”.
Mas espere um momento! As organizações de massas a que você se refere são precisamente as organizações reformistas burocráticas, como o PT e a CUT, às quais você descreveu sistematicamente nos termos mais negativos, retratando-as como coisas que estão à margem de um ponto de vista revolucionário. Agora, de repente, por razões misteriosas e inexplicáveis, elas se transformaram em organizações que não somente podem desenvolver táticas e estratégias na base da experiência, como também “se desenvolver rumo ao socialismo”.
Se for este o caso, então fica difícil de se ver por que uma “organização especificamente anarquista” é necessária em absoluto. Se os trabalhadores através de suas organizações tradicionais de massas reformistas são capazes de fazer exatamente as mesmas coisas, por que necessitamos existir como uma entidade separada?
As questões se tornam ainda mais confusas quando tentamos analisar o conteúdo da expressão “se desenvolver rumo ao socialismo”. O que isto significa? Supõe-se que estamos a favor da revolução socialista. Não se trata de “se desenvolver rumo ao socialismo”. Isto pressupõe não a revolução, mas uma evolução gradual na direção do socialismo: precisamente a fórmula milenar dos reformistas. Aqui confusão é empilhada em cima de confusão, contradição em cima de contradição. Mas desde quando esse tipo de coisa já incomodou os teóricos do anarquismo?
Para qualquer pessoa com uma compreensão elementar das ideias, essa “organização especificamente anarquista” soa muito como um partido político. E, como qualquer partido político, ele presumivelmente conterá uma divisão de responsabilidades. A menos que se refira a um grupo muito pequeno, como um círculo de discussão, ele necessitará eleger ou selecionar certos indivíduos para assumirem a responsabilidade pelo funcionamento diário da organização (publicações, finanças, propaganda etc.). Além disso, a experiência mostra que os membros mais experientes dessa organização terão mais peso em suas deliberações do que outros e que terão, de fato, um papel de liderança.
Neste ponto, o anarquista protestará de forma vociferante que a celebrada “organização especificamente anarquista” não terá nenhum líder, que todos são iguais, então não haverá necessidade de se eleger uma liderança em absoluto. Tudo o que isso significa na prática é que haverá uma panelinha de pessoas que, na prática, toma todas as principais decisões, mas que não são nem eleitos nem responsáveis perante qualquer forma de controle democrático. Vimos isso muitas vezes em grupos que se reivindicam anarquistas. Isso, na prática, leva ao pior tipo de controle hierárquico: o controle de uma camarilha não-eleita.
Um partido revolucionário não pressupõe necessariamente uma “hierarquia e autoridade concentrada em uma ‘elite intelectual superior’”, nem é guiado por um “desejo de poder”. O Partido Bolchevique sob Lenin e Trotsky foi o partido mais democrático que já existiu. Ele levou a classe trabalhadora ao poder em outubro de 1917 na Rússia. É isso que gera o ódio da classe dominante e fornece uma inspiração aos trabalhadores e à juventude que estão lutando para mudar a sociedade em todos os lugares.
É necessário um partido?
Toda a história da luta de classes durante os últimos cem anos fornece a resposta a essa pergunta. Os marxistas não negam a importância do papel do indivíduo na história, mas apenas explicam que o papel desempenhado por indivíduos ou partidos é limitado pelo nível dado de desenvolvimento histórico e pelo ambiente social objetivo que, em última análise, é determinado pelo desenvolvimento das forças produtivas. Isso não significa – como foi alegado pelos críticos do marxismo – que os homens e mulheres são meros fantoches do funcionamento cego do “determinismo econômico”.
O materialismo histórico nos ensina a olhar para além dos jogadores individuais no palco da história e a buscar as causas mais profundas dos grandes eventos históricos. Mas isso de modo algum nega ou menospreza o papel dos indivíduos na história. Em dados momentos, o papel de um só homem ou mulher pode ser decisivo. A classe trabalhadora necessita de um partido para mudar a sociedade. Se não houver um partido capaz de dar uma liderança consciente à energia revolucionária da classe, esta energia pode ser desperdiçada, da mesma forma como se perde o vapor se não há nenhum pistão para canalizar seu poder.
Marx e Engels explicaram que os homens e mulheres fazem sua própria história, mas que eles não a fazem como agentes livres, sendo limitados por sua posição na sociedade. As qualidades pessoais das figuras políticas – sua preparação teórica, habilidades, coragem e determinação – podem determinar o resultado de uma dada situação. Há momentos críticos na história humana em que a qualidade da liderança pode ser o fator decisivo que oriente o equilíbrio de uma forma ou de outra. Embora os indivíduos não possam determinar o desenvolvimento da sociedade somente pela força da vontade, o papel do fator subjetivo é, em última análise, decisivo na história humana.
O partido revolucionário não pode ser improvisado no impulso do momento, como tampouco se pode improvisar um estado-maior geral ao estalar de uma guerra. Ele tem que ser sistematicamente preparado durante anos e décadas. Rosa Luxemburgo, a grande revolucionária e mártir da classe trabalhadora, sempre enfatizou a iniciativa revolucionária das massas como a força motriz da revolução. Nisso ela estava absolutamente correta. No curso de uma revolução, as massas aprendem com rapidez. Mas uma situação revolucionária, por sua própria natureza, não pode durar muito. A sociedade não pode ser mantida em estado permanente de fermentação, nem a classe trabalhadora em um estado de ativismo candente. Ou uma saída é mostrada a tempo, ou o momento será perdido. Não há tempo suficiente para experiências ou para os trabalhadores aprenderem pelo método da tentativa e erro. Numa situação de vida e morte, os erros são pagos muito caro! Assim, é necessário combinar o movimento “espontâneo” das massas com organização, programa, perspectivas, estratégia e táticas – em uma palavra, com um partido revolucionário liderado por quadros experientes. Não é preciso dizer que esse partido de quadros deve ganhar de forma paciente a confiança das massas através de meios democráticos.
O partido marxista, desde o início, deve se basear na teoria e no programa; o aparato é meramente um meio necessário para colocar esse programa na prática. Tal teoria e programa não surge ao estalar dos dedos, mas nada mais é do que o resumo da experiência histórica geral do proletariado. Sem esta, o partido não é nada. A construção de um partido revolucionário sempre começa com o trabalho lento e laborioso de reunir e educar os quadros, que constituem a espinha dorsal do partido durante toda a sua vida. Esta é a primeira metade do problema, mas somente a primeira metade. A segunda metade é mais complicada: como alcançar a massa dos trabalhadores com nossas ideias e programa? Esta não é, em absoluto, uma questão simples.
Deve um partido revolucionário reproduzir o comunismo?
O principal erro de nosso amigo anarquista é o de imaginar que um partido (ou uma “associação anarquista”) deve reproduzir ao máximo possível a futura sociedade comunista, isto é, uma associação livre de homens e mulheres. Mas isto é um completo equívoco do papel de um partido revolucionário.
Um partido revolucionário é uma ferramenta com o objetivo de derrubar o poder estatal existente. Ele não é, e não pode ser, uma imagem espelhada da futura sociedade que será criada na base da derrubada revolucionária do capitalismo. A plaina de um carpinteiro não se assemelha à cadeira ou mesa que é o produto final de seu trabalho. A espátula da alvenaria não se assemelha a uma parede.
Quando olhamos para a estátua de David de Michelangelo, ficamos sobrecarregados pelo imenso sentimento de humanidade e ardor. É difícil de se acreditar que esta pedra não é um corpo humano; tem-se a impressão de que se a tocarmos, a sentiríamos macia e cálida. No entanto, para criar essa maravilhosa obra-prima, Michelangelo teve que usar um cinzel afiado a partir do aço mais resistente e capaz de cortar a pedra mais dura.
Apesar das diferenças de tempo e assunto, a analogia com um partido revolucionário é precisa. Não é negócio de um partido revolucionário modelar-se na futura sociedade comunista onde toda opressão e coerção serão apenas uma má memória do passado. É nosso dever reunir os elementos mais conscientes e revolucionários da classe trabalhadora e da juventude em uma organização revolucionária disciplinada à qual se submete a tarefa de uma luta implacável para derrubar os opressores, criando as condições necessárias para o estabelecimento de uma sociedade genuinamente humana e democrática.
Na realidade, os anarquistas também querem criar um partido. Mas é um partido que não se adequa às tarefas revolucionárias que a classe trabalhadora enfrenta. Ele é tão inútil para os objetivos revolucionários quanto teria sido para Michelangelo tentar transformar um enorme pedaço de pedra em uma estátua de David usando um pincel em vez de um cinzel.