SEGUNDA MARXISTA: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO MARXISMO – Parte 1

Nesta edição da Segunda Marxista apresentamos artigo publicado em 1908 por Georgi Valentinovitch Plekhanov, um dos principais responsáveis por introduzir o marxismo na Rússia e fundador da social-democracia russa. Nesse artigo e, especialmente na primeira parte que publicamos hoje, ele aborda a concepção materialista de Feuerbach e suas limitações como ponto de partida para Marx e Engels elaborarem o materialismo histórico-dialético.

I

O marxismo é toda uma concepção do mundo. Em poucas palavras, é o materialismo contemporâneo que representa o mais alto grau daquela concepção do mundo, cujas bases foram lançadas, na velha Hélade, por Demócrito, assim como pelos pensadores jônios, seus precursores. O chamado hilozoísmo não é, pois, outra coisa que um materialismo ingênuo. O mérito principal de ter recuperado e formulado os princípios fundamentais do materialismo moderno pertence incontestavelmente a Karl Marx e a seu amigo Friedrich Engels. Os aspectos histórico e econômico dessa concepção do mundo, a qual se designa comumente por materialismo histórico, assim como o conjunto, a ele ligado, das concepções sobre os problemas, o método e as categorias da economia política, sobre o desenvolvimento econômico da sociedade e, muito particularmente da sociedade capitalista, são quase que exclusivamente a obra de Marx e Engels. A contribuição de seus predecessores, neste domínio, deve ser considerada como um trabalho preparatório. Materiais, às vezes abundantes e preciosos, haviam sido reunidos mas não sistematizados nem elucidados do ponto de vista de um pensamento geral e, portanto, não puderam ser apreciados nem utilizados como deviam. O que fizeram, neste domínio, os adeptos de Marx e Engels na Europa e na América, foi o estudo mais ou menos feliz de problemas particulares, algumas vezes, é verdade, da maior importância. Daí entender-se geralmente por “marxismo” apenas os dois aspectos acima mencionados da atual concepção materialista do mundo, e isto não apenas no que se refere ao “grande público”, que ainda não está educado para a compreensão profunda das doutrinas filosóficas, mas também entre aqueles que se consideram os discípulos fiéis de Marx e Engels, tanto na Rússia como no resto do mundo civilizado. Esses dois aspectos são considerados algo completamente independente do “materialismo filosófico” e quase mesmo seus opostos. Mas como eles, arbitrariamente desligados do conjunto das concepções que lhe são aparentadas e formam sua base teórica, não podem ficar suspensos no ar, aqueles que os separaram sentem naturalmente a necessidade de “reembasar o marxismo”, acoplando-o – e ainda desta vez arbitrariamente e, com muita frequência, sob o domínio das correntes filosóficas predominantes entre os ideólogos da burguesia – a este ou àquele filósofo: Kant, Mach, Avenarius, Ostwald e, nos últimos tempos, a Joseph Dietzgen. É verdade que as concepções filosóficas de J. Dietzgen se formaram independentemente das influências burguesas, pois são, numa medida notável, aparentadas às de Marx e Engels. Mas as concepções filosóficas destes últimos têm um conteúdo incomparavelmente mais ordenado e mais rico e, já por esta única razão, não podem ser completadas mas, no máximo, até certo ponto popularizadas com a ajuda da doutrina de Dietzgen. Até agora não se tentou “completar Marx” com São Tomás de Aquino. Entretanto, não é nada impossível que, apesar da recente encíclica papal contra os modernistas, o mundo católico produza um pensador capaz desta proeza teórica.

I

Frequentemente pleiteia-se a necessidade de “completar” o marxismo com tal ou qual filosofia, alegando que em lugar algum Marx e Engels expuseram suas concepções filosóficas. Mas tal alegação é pouco convincente, e mesmo se fosse fundamentada, não seria razão para substituir as concepções filosóficas de Marx e Engels pelas do primeiro pensador que surge e que frequentemente se coloca sob um ponto de vista totalmente diferente. É necessário lembrar que dispomos de dados suficientes para ter uma ideia justa das concepções filosóficas de Marx e Engels. [1]

Estas concepções, em seu aspecto definitivo, foram expostas de maneira suficientemente completa, se bem que polêmica, na primeira parte do livro de Engels: “Herrn Eugen Dürings Umwälzung der Wissenschaft  (Anti-Dühring)” (da qual existem várias traduções russas). Na notável brochura do mesmo autor: “Ludwig Feuerbach und der Ausgang der Klassischen deutschen Philosophie” (brochura por nós traduzida ao russo e munida de um prefácio e notas explicativas), as concepções que constituem a base filosófica do marxismo são então expostas de forma positiva. Uma caracterização breve, mas brilhante, destas mesmas concepções, em suas relações com o agnosticismo, foi formulada por Engels no prefácio à tradução inglesa da brochura “Socialismo Utópico e Socialismo Científico”. No que concerne a Marx, é oportuno salientar, como de grande importância para a compreensão do aspecto filosófico de sua doutrina, inicialmente a caracterização da dialética materialista feita por ele mesmo, em oposição à dialética idealista de Hegel, no prefácio da segunda edição do primeiro tomo do “Capital”; em seguida, as numerosas observações detalhadas, consignadas de passagem, no mesmo tomo, no decorrer da exposição. Algumas páginas da “Miséria da Filosofia” são igualmente, sob certos aspectos, da maior importância. Por último, o processus da evolução das ideias filosóficas de Marx e Engels se destaca com uma clareza suficiente de seus primeiros escritos, publicados recentemente por F. Mehring sob o título: “Aus dem literarischen Nachlass von Karl Marx, Friedrich Engels und Ferdinand Lassalle”, Stuttgart 1902.

Em sua tese de doutorado intitulada “Differenz der Demokritischen und Epikureischen Naturphilosophie”, assim como em certos artigos reproduzidos por Mehring no primeiro tomo da edição recém-citada, o jovem Marx ainda aparece como o idealista puro-sangue da escola hegeliana. Mas nos artigos publicados inicialmente no “Deutsch-Französische Jahrbücher” e inseridos agora no mesmo primeiro tomo, Marx, e com ele Engels, que igualmente colaborou no Jahrbücher, já se coloca firmemente sob o ponto de vista do humanismo de Feuerbach. Na obra intitulada “Die Heilige Familie, oder Kritk der kritischen Kritik” (A Sagrada Família ou Crítica da Crítica Crítica), publicada em 1845 e reproduzida no segundo tomo da edição de Mehring, os dois autores, isto é, Marx e Engels, realizaram alguns progressos importantes no que concerne ao desenvolvimento da filosofia de Feuerbach. A direção na qual empreenderam este trabalho é visível nas onze “Teses sobre Feuerbach”, que Marx redigira na primavera de 1845 e que Engels publicou no anexo à brochura Ludwig Feuerbach, que mencionamos acima.

Em suma, não são, no caso, os materiais que faltam; é apenas necessário saber servir-se deles, ou seja, estar preparado para compreendê-los. Mas os leitores atuais não estão preparados para isto e logo não sabem deles se servir.

E por quê? Por múltiplas razões. Uma das mais importantes é que atualmente se conhece muito mal não só a filosofia hegeliana, sem a qual é difícil assimilar o método de Marx, mas também a história do materialismo, sem a qual não é possível ter uma ideia clara da doutrina de Feuerbach, que foi, em filosofia, o predecessor imediato de Marx, e que forneceu, em considerável medida, a base filosófica da concepção de mundo de Marx e Engels.

O “humanismo” de Feuerbach é frequentemente apresentado como algo bastante confuso e indeterminado. F. A. Lange, que muito contribuiu para divulgar, junto ao “grande público” e ao mundo erudito, uma ideia completamente falsa da essência do materialismo e de sua história, recusa-se totalmente a reconhecer o “humanismo” de Feuerbach como uma doutrina materialista. O exemplo de F. A. Lange foi seguido pela quase totalidade daqueles que escreveram sobre Feuerbach, tanto na Rússia como no estrangeiro. P. A. Berline, que descreve o humanismo de Feuerbach como um materialismo não “puro“, [2] também não pôde, visivelmente, subtrair-se à influência de Lange. Confessamos não ver muito claramente o que pensa sobre esta questão Fr. Mehring, o melhor e talvez único conhecedor de filosofia entre os social-democratas alemães. Em contrapartida, está perfeitamente claro para nós que Marx e Engels viam em Feuerbach um materialista. É certo que Engels chama a atenção para a inconsequência de Feuerbach. Mas isso não o impede, absolutamente, de reconhecer os princípios fundamentais de sua filosofia como puramente materialistas. E não pode ser de outra forma para quem quer que se dê ao trabalho de estudar a fundo a doutrina de Feuerbach.

II

Dizendo isso, compreendemos perfeitamente que corremos o risco de surpreender um grande número de nossos leitores. Mas isso não nos deve intimidar, pois tinha razão o pensador antigo que dizia que a surpresa era o começo da ciência. E para que nossos leitores não fiquem, por assim dizer, no estágio da surpresa, recomendamo-lhes, antes de mais nada, que se perguntem o que exatamente pretendia Feuerbach exprimir quando, esboçando brevemente, mas de forma muito característica seu curriculum vitae filosófico, escrevia: “Deus foi o meu primeiro pensamento, a razão o segundo e o homem, meu terceiro e último”. Afirmamos que esta questão encontra incontestavelmente solução nestas palavras muito significativas do próprio Feuerbach: “Na discussão entre o materialismo e o espiritualismo, o que está em questão, é a cabeça humana”.

Uma vez fixados sobre a matéria da qual é feita o cérebro, logo chegaremos a uma visão clara no que concerne igualmente toda outra matéria, no que concerne à matéria em geral. [3] Em outra parte, ele declara que sua antropologia, quer dizer, seu humanismo, significa unicamente que Deus, não é outra coisa que o próprio espírito humano. [4] Esse ponto de vista antropológico, observa Feuerbach, já não era estranho ao próprio Descartes. [5] Mas o que significa tudo isto? Significa que Feuerbach tinha tomado “o homem” como ponto de partida de seus raciocínios filosóficos unicamente porque esperava, partindo deste ponto, chegar mais cedo ao objetivo, que era dar uma ideia justa da matéria, em geral, e de suas relações com o espírito. Estamos pois, neste caso, tratando com um procedimento metodológico cujo valor era condicionado pelas circunstâncias de tempo e lugar, ou seja, pelos modos de raciocinar habituais aos eruditos alemães, ou simplesmente aos alemães cultos da época [6], mas que não dependia absolutamente de qualquer concepção particular do mundo.

Já se vê, conforme nossa citação das palavras de Feuerbach a propósito da “cabeça humana“, que na época em que ele as escreveu, a questão da “matéria da qual é feito o cérebro” tinha sido resolvida num sentido puramente materialista. E essa solução tinha sido igualmente adotada por Marx e Engels. Ela tornou-se a base de sua própria filosofia e isso sobressai com a mais completa clareza das obras de Engels: Ludwig Feuerbach e Anti-Dühring, por nós já mencionadas. Eis porque devemos examinar mais de perto essa solução, pois estudando-a, estudaremos ao mesmo tempo o aspecto filosófico do marxismo.

Em seu artigo intitulado: “Vorlaufige Thesen zur Reform der Philosophie”, surgido em 1842, e que exerceu uma grande influência sobre Marx, Feuerbach declara que “as verdadeiras relações entre o pensar e o ser devem ser expressas da seguinte maneira: o ser é o sujeito, e o pensar é o atributo“. O pensamento é condicionado pelo ser, não o ser pelo pensamento. O ser é condicionado por si mesmo… tem seu fundamento em si mesmo. [7]

Essa concepção das relações entre o ser e o pensamento colocados por Marx e Engels na base da interpretação materialista da história constitui o resultado mais importante da crítica ao idealismo hegeliano que, em seus traços principais foram feita pelo próprio Feuerbach, cujas conclusões podem ser assim resumidas:

Feuerbach achava que a filosofia de Hegel suprimira a contradição existente entre o ser e o pensar. Mas segundo ele ela suprimiu esta contradição mantendo-se ainda em seu interior, ou seja, no interior de um dos elementos dessa contradição, a saber, o pensamento. Em Hegel o pensamento é precisamente o ser: o pensamento é sujeito, o ser é atributo [8]. Daí decorre que Hegel – em geral o idealismo – só suprime a contradição por meio da supressão de seus elementos constitutivos, a saber, o ser ou a existência da matéria, da natureza. Mas suprimir um dos elementos constitutivos da contradição não significa absolutamente resolvê-la. “A doutrina de Hegel, segundo a qual a natureza “é criada” pela ideia representa a tradução, em linguagem filosófica, da doutrina teológica segundo a qual, a natureza é criada por Deus, a realidade, a matéria, por um ser abstrato, imaterial” [9]. E isto não se refere apenas ao idealismo absoluto de Hegel. O idealismo transcendental de Kant, segundo o qual o mundo exterior recebe suas leis da Razão, e não inversamente, é estreitamente aparentado à concepção teológica segundo a qual é a razão divina que dita ao mundo as leis que o regem [10]. O idealismo não estabeleceu a unidade entre o ser e o pensamento, e não pode estabelecê-la, ao contrário, ele a rompe. O ponto de partida da filosofia idealista – o eu, como princípio filosófico fundamental – é totalmente errado. O ponto de partida da verdadeira filosofia não deve ser o eu, mas o eu e o tu. Só este ponto de partida permite chegar a uma justa compreensão das relações entre o pensamento e o ser, entre o sujeito e o objeto. Eu sou “eu” para mim mesmo e simultaneamente “tu” para um outro. Eu sou ao mesmo tempo sujeito e objeto. É necessário observar, além disso, que o “eu“, não é o ser abstrato com o qual opera a filosofia idealista. Eu sou um ser real; meu corpo pertence à minha existência; ainda mais meu corpo, considerado como um todo, é precisamente meu “eu“, minha verdadeira entidade. Não é o ser abstrato que pensa, mas precisamente esse ser real, esse corpo. Daí resulta que, contrariamente ao que afirmam os idealistas, é o ser material real que é sujeito, e o pensamento atributo. E precisamente nisto que consiste a única solução possível da contradição entre o ser e o pensar, a qual se debatia sem resultado no idealismo. No presente caso, não se suprime nenhum dos elementos da contradição; eles são conservados ambos, ao mesmo tempo em que manifestam sua verdadeira unidade. “O que para mim, ou subjetivamente, é um ato puramente espiritual, imaterial, não sensível, é em si, objetivamente, um ato material sensível” [11].

Observemos que, dizendo isso, Feuerbach aproxima-se de Espinosa, cuja filosofia ele expunha com muita simpatia já na época em que seu divórcio com o idealismo apenas se esboçava, ou seja, quando escrevia sua história da nova filosofia. Em 1843, ele observa muito habilmente em seus Grunsatze que o panteísmo é um materialismo teológico, uma negação da teologia, negação que se mantém num ponto de vista teológico. E nessa confusão do materialismo com a teologia que residia a inconsequência de Espinosa, inconsequência que, entretanto, não o impediu de encontrar “a expressão justa, ao menos para seu tempo, para os conceitos materialistas da época moderna“. Por isso Feuerbach denominava Espinosa “o Moisés dos livres-pensadores e materialistas modernos” [12]. Em 1847, Feuerbach coloca a questão: “O que Espinosa chama, lógica ou metafisicamente, substância, e teologicamente, Deus?” E, a essa questão, ele responde categoricamente: “Nada mais que a natureza”. Ele vê como principal falha do espinosismo que a essência sensível, antiteológica da natureza, adquire, para ele, o aspecto de um ser abstrato, metafísico”. Espinosa suprimiu o dualismo entre Deus e a natureza, pois considera os fenômenos naturais como atos de Deus. Mas, precisamente porque os fenômenos naturais são a seus olhos os atos de Deus, este último permanece para ele um tipo de ser distinto da natureza e sobre o qual ela se apoia. Deus se apresenta como sujeito, a natureza como atributo. A filosofia, que se emancipou definitivamente das tradições teológicas, deve suprimir essa falha considerável da filosofia, no fundo exata, de Espinosa. “Abaixo esta contradição!” exclama Feuerbach. Não Deus “sive natura”, mas “Aut deus aut natura”. Aí está a verdade. [13]

Portanto, o humanismo de Feuerbach aparece como não sendo outra coisa que o espinosismo desembaraçado de seu apêndice teológico. Foi precisamente este espinosismo desembaraçado por Feuerbach de seu apêndice teológico, que Marx e Engels adotaram, quando romperam com o idealismo.

Mas desembaraçar o espinosismo de seu apêndice teológico significava desvendar seu verdadeiro conteúdo materialista. Logo, o espinosismo de Marx e Engels, era precisamente o materialismo mais moderno.

Mas não é tudo. O pensar não é a causa do ser, mas sua consequência, ou mais exatamente, sua propriedade. Feuerbach diz: “Folge und Eigenschaft” (consequência e propriedade). Eu sinto e eu penso, de maneira alguma como um sujeito oposto ao objeto, mas como um sujeito-objeto, como um ser real, material. E o objeto é para mim, não apenas a coisa que eu sinto, mas também o fundamento, a condição indispensável de minha sensação. O mundo objetivo não se encontra apenas fora de mim, ele está também em mim, em minha própria pele. O homem é só uma parte da natureza, uma parte do ser; eis porque não há lugar para a contradição entre seu pensamento e seu ser. O espaço e o tempo não existem apenas para o pensamento. Eles são igualmente formas do ser. São formas da minha contemplação. Mas eles o são unicamente porque eu mesmo sou um ser que vive no tempo e no espaço e que só percebo e sinto porque sou um tal ser. De maneira geral, as leis do ser são ao mesmo tempo também as leis do pensar.

Assim se expressava Feuerbach [14]. E é também isso que dizia Engels, se bem que em outros termos, em sua polêmica contra Dühring. Já se vê qual parte importante da filosofia de Feuerbach foi transportada para a filosofia de Marx e Engels.

Se Marx começou sua obra de interpretação materialista da história pela crítica da filosofia hegeliana do direito, só pôde assim proceder porque a crítica da filosofia especulativa de Hegel já fora feita por Feuerbach.

Mesmo criticando Feuerbach em suas teses, Marx muito frequentemente desenvolve e completa suas ideias. Eis um exemplo extraído do domínio da “gnosiologia“. Segundo Feuerbach, o homem, antes de pensar o objeto, experimenta sobre si sua ação, contempla-o, sente-o.

Marx tem em vista esse pensamento de Feuerbach, quando diz: “A principal falha do materialismo – aí incluído o de Feuerbach – consistia, até aqui, em que ele só concebe a realidade, o mundo objetivo e sensível sob a forma do objeto ou sob a forma da contemplação e não como atividade humana concreta, não como exercício prático, não subjetivamente“. É esta falha do materialismo, diz Marx adiante, que explica que Feuerbach, em seu livro sobre a Essência do Cristianismo, só considere como atividade verdadeiramente humana a atividade teórica. Em outros termos, Feuerbach chama a atenção para o fato que nosso “eu” conhece o objeto somente expondo-se à sua ação [15]; entretanto Marx replica: nosso “eu” conhece o objeto agindo, por sua vez, sobre ele. O pensamento de Marx é perfeitamente justo: já dissera Fausto: “No começo era a ação“.

Certamente pode-se responder, em defesa de Feuerbach, que também no processo de nossa ação sobre os objetos, nós só conhecemos suas propriedades, na medida em que eles agem, por sua vez, sobre nós. Nos dois casos, o pensamento é precedido pela sensação: nos dois casos, experimentamos de início as propriedades dos objetos e somente após pensamos sobre elas. Marx não o negava. Para ele, não se tratava do fato incontestável que a sensação precede o pensamento, mas do fato que o homem é levado ao pensamento principalmente pelas sensações que experimenta no processo de sua ação sobre o mundo exterior. E como esta ação sobre o mundo exterior lhe é imposta pela luta pela existência, a teoria do conhecimento está, em Marx, estreitamente ligada à sua concepção materialista da história. Não é sem razão que este mesmo pensador, que redigira contra Feuerbach a tese acima referida, escreveu no primeiro tomo de seu Capital: “Agindo sobre a natureza, exterior a si, o homem transforma ao mesmo tempo sua própria natureza“. Esta fórmula só revela todo seu profundo sentido à luz da teoria do conhecimento formulada por Marx. E veremos adiante até que ponto esta teoria é confirmada pela história da civilização e pela linguística. É necessário reconhecer entretanto que a teoria do conhecimento de Marx provém em linha direta da de Feuerbach ou, se quisermos, que ela é, propriamente falando, a de Feuerbach, só que aprofundada, de forma genial, por Marx.

Acrescentemos, de passagem, que este aperfeiçoamento genial havia sido sugerido pelo “espírito da época“. A tendência a considerar a relação recíproca de ação e reação entre o objeto e o sujeito precisamente da perspectiva em que o sujeito assume um papel ativo, era o reflexo do estado de espírito que animava a sociedade da época, onde se precisou a concepção de mundo de Marx e Engels. A revolução de 1848 já não estava longe…

III

A teoria da unidade entre o sujeito e o objeto, entre o pensar e o ser, que é própria tanto a Feuerbach quanto a Marx e Engels, foi igualmente a dos materialistas mais eminentes dos séculos XVII e XVIII.

Nós havíamos mostrado algures [16]  que La Mettrie e Diderot haviam chegado – se bem que, é necessário dizer, cada um por via distinta – a uma concepção do mundo que era “uma espécie de espinosismo”, quer dizer, a um espinosismo privado de seu apêndice teológico, que lhe desfigurava o verdadeiro conteúdo. Seria fácil demonstrar que, no que concerne à unidade entre o sujeito e o objeto, Hobbes está também muito próximo de Espinosa. Mas isto nos levaria muito longe. E, além disso, não existe nenhuma necessidade premente em fazê-lo. Será bem mais interessante para o leitor constatar que atualmente todo naturalista que reflete, por pouco que seja, sobre a questão das relações entre o pensar e o ser, chega à teoria de sua unidade que encontráramos em Feuerbach.

Quando Huxley escrevia: “Em nossos dias, nenhum daqueles que estão ao corrente da ciência contemporânea e que conhecem os fatos, pode duvidar que é necessário buscar as bases da psicologia, na fisiologia do sistema nervoso e que aquilo que chamamos de atividade do espírito é um complexo de funções cerebrais” [17], ele exprimia precisamente o que dizia Feuerbach. Só que aí agregava concepções bem menos claras e por isso pôde tentar aliar sua maneira de ver ao ceticismo filosófico de Hume [18].

Da mesma forma o “monismo” de Haeckel, aquela doutrina que tanta repercussão teve, nada mais é que uma doutrina puramente materialista, no fundo, próxima da doutrina de Feuerbach sobre a unidade entre o sujeito e o objeto. Mas Haeckel conhece muito mal a história do materialismo e por isto julga necessário combater “seu caráter unilateral“, quando deveria dar-se ao trabalho de estudar a teoria materialista do conhecimento na forma que ela adquiriu em Feuerbach e Marx. Isso o teria preservado contra muitos erros e opiniões unilaterais que facilitam consideravelmente a seus adversários lutar contra ele no terreno filosófico.

Em suas diferentes obras, como por exemplo, no relatório intitulado “Cérebro e Alma”, lido no 66º congresso dos naturalistas e médicos alemães em Viena (26 de setembro de 1894), Auguste Forel [19] aproxima-se muito do materialismo moderno, do materialismo de Feuerbach-Marx-Engels. Em certos pontos, Forel não apenas expressa ideias muito semelhantes às de Feuerbach, mas, o que é verdadeiramente surpreendente, ele dispõe seus argumentos exatamente da mesma forma que Feuerbach.

Segundo Forel, cada novo dia traz novas e convincentes provas do fato que a psicologia e a fisiologia do cérebro são apenas duas formas diferentes de considerar “uma só e mesma coisa“. O leitor não terá esquecido o ponto de vista idêntico de Feuerbach, citado acima, sobre esta questão. Este ponto de vista, pode-se completar aqui com a seguinte frase de Feuerbach: “Eu sou para mim mesmo um objeto psicológico; mas um objeto fisiológico para o outro” [20]. Afinal, a ideia principal de Forel se reduz à tese na qual a consciência é “um reflexo interior da atividade cerebral” [21]. E isto já é uma concepção puramente materialista.

Os idealistas e os kantistas de todas as espécies e de todos os matizes objetam aos materialistas que nós podemos conhecer diretamente apenas o aspecto físico dos fenômenos tratados por Forel e Feuerbach. Esta objeção, Schelhing já havia formulado de forma extremamente clara. Ele dizia que o “espírito permanecerá para sempre uma ilha, à qual só se poderia atingir através do oceano da matéria, sob condição de dar um salto“. Forel sabe perfeitamente disso, mas prova de forma concludente que a ciência seria verdadeiramente impossível, se nós não quisermos ultrapassar os limites desta ilha. “Cada homem“, diz ele, “não teria mais que a psicologia de seu subjetivismo e deveria positivamente colocar em dúvida a existência do mundo exterior, inclusive a dos outros homens” [22]. Mas tal dúvida é um absurdo. “As conclusões tiradas por analogia, a indução aplicada segundo as ciências naturais e físicas, a comparação da experiência de nossos cinco sentidos nos provam a existência do mundo exterior, assim como a de nossos semelhantes e de sua psicologia. Da mesma forma, elas nos mostram que há uma psicologia comparativa, uma psicologia dos animais. Enfim, nossa própria psicologia seria para nós incompreensível e cheia de contradições, se quiséssemos considerá-la fora de toda relação com a atividade de nosso cérebro; ela estaria sobretudo em contradição com a lei da conservação da energia” [23].

Feuerbach não se limita a indicar as contradições nas quais caem inevitavelmente aqueles que repudiam o ponto de vista materialista; ele mostra também por qual caminho os idealistas atingem sua “ilha“. Ele diz: “Eu sou eu para mim mesmo e tu para os outros. Mas só o sou enquanto ser sensível, ou seja, material. Mas a razão abstrata isola este ‘ser para si mesmo’ enquanto substância, átomo, ‘eu’, Deus. Eis porque ela só pode estabelecer de maneira arbitrária a relação entre o ‘ser para si mesmo’ e o ‘ser para os outros’. Aquilo que eu penso sem sensibilidade, eu penso fora de toda relação” [24]. Esta consideração extremamente importante é acompanhada em Feuerbach, da análise do processo de abstração que culmina no nascimento da lógica hegeliana como doutrina ontológica [25].

Se Feuerbach dispusesse dos conhecimentos que fornece a etnologia atual, teria podido acrescentar que o idealismo filosófico procede, historicamente, do animismo, próprio às raças primitivas. Isso já havia sido indicado por E. Taylor [26], e alguns historiadores da filosofia [27] já começaram a levar parcialmente em conta – se bem que, no momento, mais como curiosidade do que como um fato de considerável importância teórica.

Todas estas considerações e argumentos de Feuerbach não somente eram bem conhecidos de Marx e Engels, que sobre elas haviam refletido profundamente, mas contribuíram, indubitavelmente em grande medida, para a formação de sua própria concepção do mundo. Se, mais tarde, Engels manifestou o maior desprezo pela filosofia alemã posterior a Feuerbach, é porque ela nada mais fazia, em sua opinião, que reanimar os velhos erros filosóficos que Feuerbach já havia revelado. E, na realidade, assim era. Nenhum dos modernos críticos do materialismo trouxe um argumento que já não tenha sido refutado, seja pelo próprio Feuerbach, ou ainda antes dele, pelos materialistas franceses. Mas, para os “críticos de Marx” – E.   Bernstein, K. Schmidt, B. Croce e outros – a “deplorável sopa eclética” da filosofia alemã mais moderna parece um prato novo: eles aí se alimentam e, vendo que Engels não considerava útil dele ocupar-se acreditavam que ele se “esquivava” ao exame de uma argumentação que já há muito ele analisara e declarara sem nenhum valor. É uma velha história, sempre nova, no entanto. Os ratos jamais deixarão de acreditar que o gato é muito mais forte que o leão.

Mesmo reconhecendo a incrível semelhança e, em parte, a identidade das concepções de Feuerbach e Forel, observemos que, se este último possui conhecimentos muito mais consideráveis no domínio das ciências naturais, Feuerbach era-lhe muito superior no domínio filosófico. E por isso Forel comete erros que não encontramos em Feuerbach. Forel chama sua teoria de teoria psicofisiológica da identidade [28]. A isto nada há de essencial a objetar, pois toda terminologia é coisa convencional. Mas como a teoria da identidade esteve outrora na base de uma filosofia idealista bem determinada, Forel teria feito melhor chamando sua doutrina, franca e corajosamente, de doutrina materialista. Mas ele conservou, visivelmente, alguns preconceitos contra o materialismo e essa é a razão pela qual escolheu outro nome. Por isso consideramos necessário advertir que a identidade, no sentido que lhe dá Forel, nada tem em comum com a identidade no sentido idealista corrente.

Os “críticos de Marx” tampouco sabem disso. Em sua polêmica conosco, K. Schmidt atribuía aos materialistas a doutrina idealista da identidade. Realmente, o materialismo reconhece a unidade entre o sujeito e o objeto, mas nunca sua identidade. E foi ainda Feuerbach que explicou isso muito bem.

Segundo Feuerbach, a unidade entre o sujeito e o objeto, entre o pensar e o ser, só tem sentido quando o homem é tomado como base desta unidade. Isto tem ainda um certo ar de “humanismo” e a maioria dos que estudaram Feuerbach acharam desnecessário refletir seriamente sobre a forma na qual o homem serve de base da unidade dos opostos acima mencionados. Na realidade Feuerbach compreende isso da seguinte maneira: “O pensamento só não está desligado do ser onde não é um sujeito para si mesmo, mas o atributo de um ser real (quer dizer, material)” [29]. Ora, em quais sistemas filosóficos o pensamento é “sujeito para si mesmo“, ou seja, algo independente da existência corporal do indivíduo pensante? A resposta é clara: nos sistemas idealistas. Os idealistas transformam inicialmente o pensamento em uma entidade autônoma, independente do homem (em “sujeito para si“) e, depois, declaram que, nessa entidade – precisamente porque ela tem existência distinta, independente da matéria – se resolve a contradição entre o ser e o pensamento. E, com efeito, ela aí se resolve, pois o que é afinal esta entidade? li o pensamento. E este pensamento tem uma existência completamente independente. Mas esta solução da contradição é uma solução puramente formal. Obtém-se este resultado, como já havíamos dito, suprimindo um dos elementos da contradição, a saber, o ser independente do pensar. O ser se apresenta como simples propriedade do pensar e, quando dizemos que tal objeto existe, isto apenas significa que ele existe em nosso pensamento. Assim o compreendia, por exemplo, Schelling. Para ele, o pensar era o princípio absoluto, de onde procedia necessariamente o mundo real, que dizer, a natureza e o espírito “finito“. Mas como? Que significava a existência do mundo real? Nada mais que a existência no pensamento. Para Schelling, o universo era só autocontemplação do espírito absoluto. O mesmo se dava em Hegel. Mas Feuerbach não se contenta com tal solução, puramente formal, da contradição entre o pensar e o ser. Ele mostra que não há e não pode haver pensamento independente do homem, quer dizer, do ser real, material. O pensamento é uma atividade do cérebro. “Mas o cérebro só é um órgão de pensamento na medida em que está ligado a uma cabeça e a um corpo humanos” [30].

Vemos agora em que sentido o homem é, para Feuerbach, a base da unidade entre o ser e o pensar; no sentido em que ele mesmo nada mais é que um ser material que possui a faculdade de pensar. Mas se ele é um tal ser, está claro que nenhum dos elementos da contradição tem necessidade de ser nele suprimido: nem o ser, nem o pensar, nem a “matéria“, nem o “espírito“, nem o sujeito, nem o objeto. Eles nele se unem exatamente como um sujeito-objeto. “Eu sou e eu penso… unicamente como um sujeito-objeto“, diz Feuerbach.

Ser não significa existir no pensamento. Neste aspecto, a filosofia de Feuerbach é muito mais clara que a de J. Dietzgen. “Provar que uma coisa existe“, diz Feuerbach, “é provar que ela existe não simplesmente no pensamento” [31]. E isto é perfeitamente justo. Mas isto quer dizer que a unidade do pensar e do ser não significa e não pode significar, sua identidade. Aqui aparece um dos traços mais importantes que distinguem o materialismo do idealismo.

IV

Quando se diz que Marx e Engels foram durante certo tempo adeptos de Feuerbach, frequentemente quer-se dizer com isto, que sua concepção do mundo se modificou posteriormente e se diferenciou completamente da de Feuerbach. É também o que pensa K. Diehl, que acha que normalmente se exagera muito a influência exercida por Feuerbach sobre Marx [32]. Aí está um erro formidável. Mesmo após ter deixado de seguir Feuerbach, Marx e Engels continuaram a partilhar de uma parte considerável de seus pontos de vista filosóficos. É isto que aparece claramente nas teses de Marx sobre Feuerbach. Estas teses não refutam absolutamente Feuerbach; elas as completam apenas e, sobretudo, exigem que estas ideias sejam, de forma mais consequente que em Feuerbach, aplicadas à interpretação da realidade que rodeia o homem e, em particular, a interpretação de sua própria atividade. “Não é o pensar que determina o ser, é o ser que determina o pensar“. Este pensamento que está na base de toda filosofia de Feuerbach, Marx e Engels o colocam também na base da interpretação materialista da história. O materialismo de Marx e Engels é uma doutrina bem mais desenvolvida que o materialismo de Feuerbach. Mas as concepções materialistas de Marx e Engels se desenvolveram no próprio sentido indicado pela lógica interna da filosofia de Feuerbach. Eis porque estas concepções e particularmente seu aspecto filosófico, jamais serão completamente claras para aquele que não quiser se dar ao trabalho de conhecer a parte considerável da filosofia de Feuerbach que entrou na concepção do mundo dos fundadores do socialismo científico. E se vocês virem alguém esforçar-se por encontrar um “fundamento filosófico” para o materialismo histórico, esteja persuadido que existe, no saber deste mortal, apesar de sua profundidade, grande lacuna a este respeito.

Mas deixemos os espíritos profundos entregues a seus trabalhos. Já em sua terceira tese sobre Feuerbach, Marx aborda o problema mais árduo de todos os que devia enfrentar no domínio da “prática” histórica do homem social e que resolve com a ajuda do conceito justo, elaborado por Feuerbach, da unidade entre o sujeito e o objeto. Esta tese é assim concebida: “A doutrina materialista segundo a qual os homens são produtos das circunstâncias e da educação… não tem em conta o fato que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador também deve ser educado“. Uma vez resolvido este problema, o “segredo” da interpretação materialista da história foi encontrado. Mas precisamente Feuerbach não podia resolvê-lo. No domínio da história, ele permanecia idealista – exatamente como os materialistas franceses do século XVIII, com os quais ele tinha aliás muitos traços comuns. Então foi necessário a Marx e Engels tudo reconstruir, utilizando o material teórico acumulado até então pela ciência social e, era particular, pelos historiadores franceses da época da Restauração. Mas, também no que se refere a isto, a filosofia de Feuerbach lhes forneceu um grande número de indicações preciosas. Feuerbach disse particularmente: “A arte, a religião, a filosofia e a ciência não são mais que as manifestações ou as revelações da ‘essência humana’ ” [33]. Daí decorre que é necessário procurar na “essência humana” a explicação de todas as ideologias, ou seja, que a sua evolução é determinada pela evolução da “essência humana“. Mas o que é a essência humana? A isto Feuerbach responde: “A essência humana só reside na comunidade, na unidade do homem com o homem” [34]. É muito vago. E eis-nos diante do limite que Feuerbach jamais ultrapassou. Mas é justamente para além deste limite que começa o domínio da interpretação materialista da história descoberta por Marx e Engels. Esta interpretação nos indica as causas que que determinam, no curso da evolução humana, “a comunidade, a unidade do homem com o homem“, ou seja, as relações mútuas que os homens estabelecem entre si. Este limite, que separa Marx de Feuerbach, mostra também até que ponto eles estão próximos.

Lê-se na sexta tese sobre Feuerbach que a essência humana é o conjunto de todas as relações sociais. É bem mais preciso que em Feuerbach, mas aqui se revelam, talvez mais claramente que em qualquer outro lugar, as estreitas relações existentes entre a concepção do mundo de Marx e a filosofia de Feuerbach.

Quando Marx escreveu esta tese, já conhecia não só a direção na qual era necessário buscar a solução do problema, mas também a própria solução. Em sua “Introdução à Critica da Filosofia do Direito de Hegel”, ele mostrara que as relações dos homens em sociedade, “as relações jurídicas, assim como as formas do Estado, não podem ser explicadas nem por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano; que elas têm suas raízes nas condições materiais de existência, cujo conjunto foi denominado “sociedade civil” por Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século XVIII; que a anatomia da sociedade civil deve ser buscada em sua “economia“.

Não faltava, daí por diante, senão explicar a origem e a evolução da economia, para ter a solução completa do problema que o materialismo não pudera resolver durante séculos. E esta explicação foi dada por Marx e Engels.

É evidente que, falando de solução completa deste grande problema, nós só temos em vista a solução geral, algébrica, que o materialismo não pôde encontrar durante vários séculos. É evidente que falando de solução completa, nós temos em vista, não a aritmética do desenvolvimento social, mas sua álgebra, não a explicação das causas dos diferentes fenômenos, mas a explicação do procedimento ao qual é preciso ater-se para descobrir estas causas. Isto significa que a interpretação materialista da história tem sobretudo um valor metodológico. Isso Engels compreendia muito bem quando escreveu: “O que é necessário, não são tanto os resultados brutos quanto o estudo; os resultados nada são sem a evolução que a eles conduziu” [35]. Mas é isto que não compreendem, a maior parte do tempo, nem os “críticos” de Marx – aos quais, como se diz, o Senhor perdoará – nem alguns de seus “adeptos”, o que é bem pior. Miguel Ângelo dizia: “Meus conhecimentos engendrarão um grande número de ignorantes“. Essa predição infelizmente se verificou. Agora, são os conhecimentos de Marx que engendram ignorantes. A falha não é, evidentemente, de Marx, mas daqueles que dizem tantas tolices em seu nome. Mas para evitar estas tolices é necessário precisamente compreender o valor metodológico do materialismo histórico.

PUBLICADO EM MARXISTS.ORG

Parte 2


Notas:

[1] O livro de VI. Verigo: Marx als Philosoph (Berna e Leipzig, 1904), é consagrado à filosofia de Marx e Engels. É difícil, todavia, imaginar obra tão insatisfatória.

[2] Ver seu interessante livro: A Alemanha nas vésperas da Revolução de 1848, São Petersburgo, 1906, p. 228-229.

[3] Ueber Spiritualismus und Materialismus,Oeuvres, X, p. 129.

[4] Oeuvres, IV, p. 249.

[5] Ibid.. , p. 249.

[6] O próprio Feuerbach diz muito bem, que o começo de toda filosofia é determinado pelo estado precedente do pensamento filosófico.

[7] Oeuvres, II, p. 263 ( Oeuvres , edição do Instituto Marx-Engels, t. I, p. 71).

[8] Ibid.,II, p 261.

[9] Ibid., p. 262.

[10] Ibid., p 295.

[11] Ibid., p 350.

[12] Ibid., p 291.

[13] Ibid., p 350.

[14] Ibid., 11, p. 334, e X, p. 184-186.

[15] “O pensar”, diz ele,”é precedido pelo ser; antes de pensar a qualidade, você a sente” (Oeuvres , II, p. 253).

[16] Ver o artigo intitulado: “Bernstein e o Materialismo” em nossa coletânea Critique de nos Critiques (Plekhanov, Oeuvres, t. XI)

[17] Hume, as Vie, as Philosophie, p. 108.

[18] Ibid., p. 110.

[19] Ver também o terceiro capítulo de seu livro: l’Âme et le Systême Nerveux. Hygiene et Pathologie, Paris, 1906.

[20] Oeuvres, II, p. 348-349.

[21] Die physchischen Fahigkeiten der Ameisen etc., Munique, 1901, p. 7.

[22] Ibid., p. 7 e 8.

[23] Ibid.

[24] Oeuvres, II, p. 322.

[25] “O espírito absoluto de Hegel não é outra coisa que o espíritcs abstrato, que o espírito isolado de si mesmo, o que chamamos o espírito finito, assim como o Ser infinito da teologia não é outra coisa que o Ser abstrato finito”. (Oeuvres, II, p. 263).

[26] La Civilisation Primitive, Paris, 1876, t. II, p. 143. É preciso-observar que Feuerbach teve, no que se refere a isto, uma intuição-verdadeiramente genial. Ele diz: “O conceito de objeto não é primitivamente outra coisa que o conceito de um outro ‘eu’. Assim, o homem concebe na infância todos os objetos como seres que agem livre e arbitrariamente; é por isso que o conceito de objeto nasce, em geral, por intermédio do tu, que é o eu objetivo”. Reymond, Lausanne, 1905, p. 414-415

[27] Ver T. Gomperz: Les Penseurs de la Grèce, trad. por Aug. Reymond, Lausanne, 1905, p. 414-415.

[28] Ver seu artigo, intitulado: Die Psycho-physiologische Identitatstheorie als wissenschaftliches Postulat, na coletânea Festschrift, I.

[29] Oeuvres, II, p. 340

[30] Jbid., p. 362 e 363.

[31] Ibid., X, p. 187

[32] Handwõrterbuch der Staatswissenschaften, V, p. 708.

[33] Oeuvres, II, p. 343.

[34] Ibid., II, p. 344.

[35] Oeuvres posthumes, 1, p. 477.

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