Como o capitalismo britânico enriqueceu através da escravidão

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O comércio de escravos, por Auguste Francois Biard, 1833

O movimento Black Lives Matter ajudou a iluminar a própria história racista e colonial da Grã-Bretanha. Fiona Lali analisa as origens do capitalismo britânico, que surgiram – nas palavras de Marx – com “sangue pingando por todos os poros“.

A derrubada da estátua do comerciante de escravos Edward Colston, em Bristol, em 11 de junho, chamou a atenção do envolvimento da Grã-Bretanha no tráfico de escravos no Atlântico. Embora oficialmente abolido na Grã-Bretanha em 1807, esse horrível comércio de seres humanos foi central para a ascensão do capitalismo e a ascensão da Grã-Bretanha como uma potência mundial em particular.

A escravidão existe em toda a história da sociedade de classes em vários lugares. Hoje, porém, é mais comumente entendido como um episódio bárbaro em que seres humanos foram trazidos da África Ocidental e transportados para plantações na América e no Caribe.

No início do século 15, Portugal “explorou” a costa da África, principalmente em busca de ouro. Foi o primeiro país europeu a fazê-lo. E os portugueses desfrutaram rapidamente da perspectiva de comércio com a África sem ter que passar pelo bloco dos países islâmicos no norte. Nesta fase, embora o comércio de escravos tenha ocorrido, foi em pequeno número. O ouro era o verdadeiro prêmio.

Na década de 1470, por exemplo, os portugueses alcançaram o que ficou conhecido como a “Costa Dourada” – Gana. Logo depois, vemos o início das negociações do ouro africano na Europa. Nessa fase, a Grã-Bretanha só podia ver Portugal com inveja. Eventualmente, porém, o comércio de seres humanos se tornou a empresa mais lucrativa.

Arquiteto da escravidão

Com o tempo, a Grã-Bretanha se recuperou do atraso. O envolvimento britânico no comércio começou em meados do século 16. A Grã-Bretanha logo se tornou um participante fundamental do comércio transatlântico de escravos. Com isso, alcançou os altos níveis de lucro necessários para se tornar uma poderosa potência capitalista.

As empresas que participaram do comércio de escravos se tornaram uma parte importante da revolução industrial. Para a crescente classe capitalista, o comércio de escravos teve um papel fundamental na expansão do mercado global. Nas palavras de Karl Marx:

“É a escravidão que valoriza as colônias, são as colônias que criaram o comércio mundial, e o comércio mundial é a condição necessária para a indústria de máquinas em larga escala. Consequentemente, antes do comércio de escravos, as colônias enviavam muito poucos produtos ao Velho Mundo e não mudavam visivelmente a face do mundo”.

Portugal e Grã-Bretanha foram os dois países mais bem-sucedidos no comércio de escravos, representando cerca de 70% de todos os africanos transportados para as Américas. Embora houvesse portos em Liverpool, Bristol, Portsmouth e Lancaster, grande parte da Grã-Bretanha não via de forma direta a natureza da escravidão.

A riqueza da Grã-Bretanha veio do comércio, e não de uma economia interna dependente do trabalho dos escravos, como foi o caso na América. A defesa ideológica da escravidão e do racismo foi, portanto, intensificada nos estados americanos – em parte devido à presença física das plantações.

O domínio da Grã-Bretanha atingiu o pico entre 1640 e 1807, quando o comércio britânico de escravos foi tecnicamente “abolido”. Nos Estados Unidos, no entanto, a escravidão continuou até e durante a guerra civil, terminando apenas em 1865.

Motivação econômica

A classe dominante britânica tem um sentimento equivocado de superioridade na questão da abolição. Foi de fato a primeira a fazê-lo (embora, na realidade, tenha continuado até a década de 1830).

No entanto, isso não foi devido a alguma mudança sentimental repentina em relação à escravização dos negros. Em vez disso, foi motivado puramente pelo interesse econômico, pois o surgimento da sociedade capitalista significava que a escravidão era menos lucrativa do que o trabalho assalariado “livre”.

A.L. Morton observa em seu trabalho, A People’s History of England: “Rentável como o tráfico de escravos provou ser durante o século 18, sua repressão no século 19 foi ainda mais lucrativa“. A escravidão, em suma, simplesmente se tornou antieconômica.

É verdade que houve uma enorme pressão exercida sobre o Estado britânico pelo movimento abolicionista, tanto em casa quanto nas colônias – um movimento que incluía muitos radicais.

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Imagem: Domínio público

Além disso, havia crescentes revoltas de escravos. A grande revolta de escravos de 1831 na Jamaica (uma das muitas outras através das ilhas) foi um ponto de virada para a população de colonos brancos, que já estava em menor número.

Marx reconheceu que, para a classe dominante, havia limites aos quais a escravidão e o maquinário moderno podiam ser compatíveis. O escravo pode ser muito barato, mas, no final das contas, não tem incentivo para cuidar de máquinas ou aumentar a produtividade. No final, eles continuam sendo escravos. Enquanto isso, um assalariado deve satisfazer a expectativa de seu patrão de ter trabalho no dia seguinte.

Marx também observou a importância das revoltas de escravos:

“Na minha opinião, a coisa mais importante que está acontecendo no mundo hoje é, por um lado, o movimento entre os escravos na América, iniciado pela morte de Brown, e o movimento entre os escravos na Rússia, por outro … acabei de ver no Tribune que houve uma nova revolta de escravos no Missouri, naturalmente reprimida. Mas o sinal já foi dado.”

Abolição fraudulenta

De fato, a abolição do comércio de escravos – embora inconveniente para os que estavam no negócio – viu os proprietários de escravos serem recompensados de maneira muito generosa. O equivalente moderno de 17 bilhões de libras foi pago como compensação aos proprietários de escravos.

Isso é algo que alguém poderia esperar que a classe dominante evitasse lembrar. Mas não foi assim; em 2018, o Tesouro tuitou orgulhosamente sobre esse fato: “Milhões de vocês ajudaram a acabar com o comércio de escravos através de seus impostos“.

Esta é uma mensagem para os negros britânicos como se dissesse: “embora alguns de seus antepassados tenham sido escravizados, eles acabaram por ser ‘libertados’; e agora podes pagar às famílias daqueles que os possuíam!

A abolição foi uma fraude em si mesma. Como a compensação não era suficiente, o governo implementou um esquema de “aprendizado” no qual os escravos tinham que continuar trabalhando para seus antigos senhores por um período de quatro a seis anos em troca de provisões: 45 horas por semana sem pagamento.

A própria Lei da Abolição abriu o caminho para as forças britânicas se tornarem “a polícia internacional” da escravidão. Esquadrões navais britânicos foram mobilizados para patrulhar a costa da África Ocidental e do Caribe em busca de escravos ilegais. Na realidade, este foi o começo de uma nova exploração e conquista da África, a ser redesenhada no interesse do capitalismo britânico.

Lembre-se do passado

O legado da escravidão continua vivo hoje em nossa sociedade brutalmente desigual. Foi abolida, mas a exploração permanece. E a exploração do povo negro está, portanto, envolvida neste sistema hoje.

Vemos isso em nossas estátuas. Vemos isso no fato de que a remuneração dos proprietários de escravos foi paga pelo contribuinte britânico até 2015, mais de 200 anos depois. Vemos isso na pobreza intergeracional; na segregação habitacional; e em atitudes culturais que percebem os negros como “perigosos”, “violentos” e pouco inteligentes.

Esse legado também está na fachada daqueles que hoje nos governam. O ex-primeiro-ministro, David Cameron, tem raízes familiares nessa riqueza. O general Sir James Duff, oficial do Exército e deputado por Banffshire, na Escócia, durante o final dos anos 1700, era filho de um dos bisavós de Cameron e recebeu 4.101 libras esterlinas – o equivalente a mais de 3 milhões de libras hoje – para compensá-lo pelos 202 escravos que possuía.

Mas não é apenas Cameron. Você pode escolher entre os seus colegas que se sentam na Câmara dos Lordes – e a própria rainha – muitos dos quais são descendentes diretos dessas poderosas famílias proprietárias de escravos.

A riqueza da classe capitalista britânica nasceu da escravização dos negros. Marx estava certo quando disse que o capitalismo nasceu com “sangue pingando por todos os poros“.

Boris Johnson e os conservadores dizem que devemos lembrar o passado. Nós nos lembramos: dos crimes da classe dominante britânica, da escravidão até o Windrush[1].

A classe trabalhadora se lembra. E com essa história aprendemos a verdade: que o domínio de uma minoria sobre a maioria é a forma de vida mais bárbara. E devemos lutar para aboli-lo completamente

[1] Na 2ª Guerra Mundial, milhares de prédios foram bombardeados e centenas de moradias deviam ser reconstruídas. Era 1948 e o Reino Unido apenas começava a se repor dos efeitos da 2ª Guerra Mundial. Nesse contexto de recuperação, havia muito trabalho a fazer e uma grande necessidade de mão de obra no país. Por isso, milhares de cidadãos de países do Caribe, como Jamaica, Barbados, Guayana ou Trinidad e Tobago – que permaneciam, então, sob domínio britânico – responderam a um apelo no qual se oferecia emprego e uma nova vida no Reino Unido. Muitos chegaram ao país ainda crianças entre as décadas de 1950 e 1970. A maioria não regressou nunca aos seus lugares de origem, É conhecida como a “geração Windrush”. Agora, depois de décadas de vida no Reino Unido, centenas deles temem ser deportados. O motivo é a falta de documentação oficial.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.

PUBLICADO EM SOCIALIST.NET

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