Do medo à organização: como enfrentar a violência contra as mulheres?

A violência contra as mulheres persiste em nossa sociedade, evidenciada e cada vez mais noticiada pelos casos recentes que chocaram o país. São expressões da degeneração da sociedade capitalista e sinais da barbárie que avança em nosso tempo. O feminicídio de Vitória Regina, de 17 anos, em Cajamar-SP, cujo corpo foi encontrado em uma área de mata após ela desaparecer a caminho de casa, em paralelo ao de Clara Maria, Amanda de Paiva, Gisele Cristina e tantas outras vítimas desse tipo de brutalidade, nos evidencia a realidade que permeia as mulheres da classe trabalhadora, que todos os dias estão sujeitas a diversos tipos de violência e péssimas condições de vida. Todos os dias, mulheres são violentadas ou assassinadas e viram manchete de jornal.

A cada notícia, o desespero nos afoga. Na volta para casa, a rua se torna um labirinto de sombras, onde cada passo é medido com a angústia de quem teme não chegar. Aceleramos o passo, como se a velocidade pudesse nos proteger do perigo iminente. Adotamos todo tipo de cuidado para não virarmos estatística. Mas, para milhares de mulheres, qualquer “cuidado” individual não basta, na verdade nunca foi sobre isso.

Sobreviver à violência deixa marcas profundas e um peso emocional quase insuportável. Ao tentar denunciar, nos deparamos com um sistema que está mais interessado em protelar do que em proteger. O medo de reações por parte do agressor e a falta de recursos financeiros para escapar dele nos levam a desistir de buscar justiça, deixando-nos à mercê da situação, esperando um futuro incerto. Mesmo quando o agressor é preso, sua rápida liberdade permite que outras pessoas sejam colocadas em perigo. Casos recentes como o de Elaine Domenes de Castro, morta pelo ex-marido que já havia cometido outro feminicídio em 2005, mostram como como o sistema capitalista e suas instituições não oferecem segurança às mulheres, principalmente as trabalhadoras.

10 anos da Lei de Feminicídio e o que mudou?

No mesmo mês que publicamos este texto, a Lei de Feminicídio completa 10 anos desde sua homologação. Daquele período para cá, o que mudou na vida da mulher trabalhadora? De acordo com o Atlas da Violência de 2024, que coleta dados da década de 2012-2022, ao menos 48.289 mulheres foram assassinadas no Brasil. Dados mais recentes indicam que a cada 17 horas, ao menos uma mulher foi vítima de algum tipo de violência no Brasil, sendo as mulheres negras as principais vítimas das violências direcionadas ao sexo feminino no país, somando 66,9% dos casos registrados.

Quando falamos de estupro, os dados também assustam. Segundo o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram registrados 83.988 estupros em 2023, equivalendo a 1 estupro a cada 6 minutos.

Com o agravamento da crise atual do sistema capitalista, que impõe o desemprego, a falta de acesso à educação, saúde e moradia dignas, muitas mulheres são jogadas ao subemprego ou, no pior dos casos, à prostituição, para dar um jeito de garantir a sua sobrevivência ou de suas famílias. Muitas famílias chegam a vender as próprias filhas para pagar dívidas e garantir o sustento. Outras são vítimas do tráfico humano, especialmente em regiões mais vulneráveis do mundo. O Brasil, infelizmente, está entre os principais polos desse mercado de exploração, tanto em trabalho escravo quanto em tráfico sexual.

Contudo, a violência contra a mulher é um fenômeno global, não exclusivo do nosso país. O Anuário da ONU Mulheres revela que 140 mulheres são mortas todos os dias no mundo todo. Esse problema se intensifica a partir das guerras, onde, dos registros de 33,443 mortes de civis em conflitos armados em 2023, 4 em cada 10 mortes são de mulheres e crianças, com os maiores registros na região da Palestina. Além disso, as mulheres continuam sendo as maiores vítimas de abuso sexual nessas circunstâncias, totalizando 94% dos casos. Há registros recentes de denúncias desse tipo de violação na Palestina, por parte de soldados israelenses, com o mesmo se repetindo nas guerras civis no Sudão, Congo, Ucrânia e outras tantas em curso no mundo.

Diante desse quadro mundial, é muito fácil pensarmos que não há saída e que a opressão contra a mulher sempre existiu e não poderá ser mudada. Contudo, estudos sobre a sociedade primitiva a partir de L. H. Morgan, agregados por Engels em “A Origem da Família, da Propriedade e do Estado” nos indicam o contrário. Existe uma origem para essa opressão e violência, é possível mudar a vida das mulheres, é sim possível acabar com a violência e a opressão.

A origem histórica da opressão e da violência contra as mulheres

As primeiras sociedades documentadas historicamente, que viveram pouco mais de 30 mil anos antes do que caracterizamos como civilização, viviam da caça e da coleta. Essas sociedades praticavam a distribuição igualitária dos bens e não dispunham de uma divisão de classes, isto é, proprietários dos meios de produção ou propriedade fundiária. A terra e as ferramentas eram de todos, assim como os frutos da caça e da coleta. A única diferença social entre homens e mulheres era que os homens caçavam e as mulheres coletavam – há vestígios das antigas sociedades, como túmulos de mulheres com armas, que indicam que essa distribuição não era fixa. Já que não havia nenhum tipo de exploração que pairava nessas sociedades, Marx e Engels caracterizaram esse período como “comunismo primitivo”.

Historicamente, a subordinação da mulher surgiu através de diferentes estruturas familiares, todas elas como expressão da divisão da sociedade em classes e o surgimento da propriedade privada dos meios de produção – como demonstrado por Friedrich Engels em “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, publicado em 1884. Para escrever essa obra, Engels se baseia no texto de Lewis Henry Morgan, “A Sociedade Primitiva” (1877), onde o autor fez um importante trabalho de campo entre os iroqueses, nativos da América do Norte. Para Morgan, a sociedade possui uma ordem precisa, dividida em três estágios pré-históricos de cultura: estado selvagem, barbárie e civilização.

A estrutura familiar evoluiu significativamente ao longo da história, refletindo mudanças nas relações sociais e econômicas. No “Estado Selvagem”, a família consanguínea era caracterizada por relações sexuais entre irmãos e irmãs, uma prática que revelava a natureza endógena da reprodução familiar. Com o avanço para a “Barbárie”, a família sindiásmica surgiu, proibindo relações entre irmãos e irmãs e introduzindo categorias como sobrinhos, sobrinhas, primos e primas. Nesse contexto, o matrimônio por grupos se tornou uma prática comum, e as gens foram estabelecidas para organizar as relações familiares por linha feminina. A consolidação da monogamia ocorreu apenas com o advento da “Civilização” e o desenvolvimento da agricultura. Essa mudança marcou uma transformação profunda nas relações familiares e sociais, refletindo a necessidade de estabelecer linhagens claras e garantir a transmissão de propriedades.

Segundo Engels, a transição da comunidade primitiva para o escravismo, que marcou o fim do “comunismo primitivo”, foi um momento crucial na história da humanidade. Nesse período, emergiu a sociedade de classes com o surgimento da propriedade privada. Além da escravidão de outros homens, sobretudo os vencidos nas guerras, essa fase deu início à opressão das mulheres, caracterizada pela subordinação violenta desta ao direito paterno. Engels afirma:

“O desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo. O homem apoderou-se também da direção da casa; a mulher viu-se degradada, convertida em servidora, em escrava da luxúria do homem, em simples instrumento de reprodução. Essa baixa condição da mulher, manifestada sobretudo entre os gregos dos tempos heroicos e, ainda mais, entre os dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocada, dissimulada e, em certos lugares, até revestida de formas de maior suavidade, mas de maneira alguma suprimida.” Origem da Família, da propriedade privada e do Estado. Friedrich Engels 1884

A mulher passa a ser propriedade do homem, assim como os filhos, as ferramentas, os escravos e o excedente da produção. O capitalismo, ao reintroduzir a mulher na esfera social de produção como assalariada, cumpriu um papel progressista. Agora as mulheres não estavam mais encerradas na esfera privada do lar. Contudo, esse progresso foi relativo porque ao mesmo tempo não retirou as contradições das sociedades anteriores, mas as agravou.  A opressão contra as mulheres continuou no sistema capitalista, agravando a situação da mulher como propriedade e mercadoria. Além de toda a opressão não suprimida e transmitida desde o início da propriedade privada, as mulheres passaram a ter uma dupla e tripla jornada de trabalho – casa, filhos e trabalho.

Contudo, a opressão contra as mulheres, nem sempre existiu conforme demonstra o estudo de Morgan e Engels. E por isso, entender a história nos dá perspectiva de que a realidade brutal de opressão e violência não é uma condição que as mulheres sempre vão experimentar, apenas por serem mulheres. Não é uma condição “natural”, mas uma situação social, fruto de uma sociedade dividida em classes e da propriedade privada dos meios de produção e reprodução da vida. Se entendemos isso corretamente, compreendemos também que é através da superação da divisão da sociedade em classes e da propriedade privada dos meios de produção que podemos eliminar e abolir a violência e a opressão contra as mulheres.

Quais as saídas que temos? Como podemos lutar contra a violência contra as mulheres?

Após mais de 100 anos, a Revolução Russa continua sendo um dos marcos na luta contra a opressão das mulheres na história mundial da luta de classes. Durante esse período, a União Soviética enfrentou e superou desafios cruciais, como a escravidão doméstica e o analfabetismo, além de promover a igualdade entre os sexos em todos os aspectos. Lavanderias e refeitórios públicos tornaram-se uma política do Estado soviético para acabar com a escravidão do lar. Creches públicas com direito a refeição, uniforme, material e calçados para todas as crianças se tornou uma realidade, tornando o cuidado com os filhos cada vez mais social.

Em 1919, o Departamento das Mulheres (Zhenotdel) foi criado por Inessa Armand e Alexandra Kollontai. Esse comitê organizava campanhas de conscientização sobre os direitos das mulheres, criava casas de abrigo e ajudava as mulheres a saírem de relações abusivas, incentivava a independência das mulheres por meio do trabalho e educação, promovia mudanças na legislação, tal como a criminalização do estupro conjugal em 1922. Nos sovietes locais, também havia comitês femininos para colocar as novas leis em prática. Em 1930, Stálin dissolveu o Zhenotdel.

Reunião de Zhenotdel na região de Amur, 1920

Contudo, aquelas conquistas não apenas transformaram a sociedade soviética, mas abalaram o mundo todo:

“Os bolcheviques removeram todas as leis que impunham a desigualdade entre os sexos. As mulheres ganharam o direito ao aborto e ao divórcio, e a distinção entre filhos nascidos dentro ou fora do casamento foi abolida. Em comparação, o direito ao divórcio só foi introduzido na Dinamarca em 1925, e o direito ao aborto em 1973! As crianças dinamarquesas aprendem que a social-democrata Nina Bang foi a primeira mulher ministra do mundo. No entanto, ela só se tornou ministra em 1924, sete anos depois de Alexandra Kollontai ter sido nomeada Comissária do Povo, ou seja, Ministra, na União Soviética.” (Lênin, o comunismo e a emancipação das mulheres)

A degeneração da Revolução Russa e a contrarrevolução burocrática a partir de Stálin até a total restauração capitalista levou a diversos retrocessos e a perda dos direitos das mulheres, a tal ponto de Putin descriminalizar a violência doméstica em 2017. Isso  destaca a importância da luta internacional contra o capitalismo e a opressão contra as mulheres. Essa luta é essencial para garantir que as nossas conquistas sejam preservadas e possam se expandir cada vez mais.

É fundamental compreendermos que este sistema não tem nada a nos proporcionar além da miséria e da violência, e que, portanto, lutar por seu fim é a nossa prioridade.

Isso não quer dizer, de forma alguma, que não devemos lutar pela legalização do aborto e pelo emprego pleno para todas as mulheres, por exemplo. Pelo contrário, devemos combater todo tipo de opressão contra a mulher trabalhadora, mesmo porque estas são reivindicações que conduzem ao questionamento da estrutura vigente e a um programa de sociedade que ultrapassa os marcos do capitalismo: são reivindicações transitórias.

É necessário ajudar as massas, no processo de suas lutas cotidianas a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista. Esta ponte deve consistir em um sistema de reivindicações transitórias que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e con­duza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado.” Programa de Transição, Trotsky 1938

Ou seja, sem uma conexão das lutas cotidianas das mulheres com o fim do sistema que as submete a condições míseras de vida, não há avanço, pois, as causas para cada um de nossos problemas são proporcionadas pelo sistema em que vivemos. Uma vez que a instauração da sociedade de classes imputou a opressão sobre a mulher, essa subordinação só poderá ter fim combatendo a sociedade de classes e a propriedade privada, isto é, hoje, o próprio sistema capitalista.

Temos clareza de que será com a instauração de um regime socialista, com a classe operária no poder, que poderemos pôr um fim definitivo a essa opressão milenar que assola as mulheres trabalhadoras de todo o mundo, pois não, não há futuro para a mulher trabalhadora dentro do capitalismo. Nossa única saída é lutar por um novo mundo, onde sejamos “socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”, como dizia a revolucionária Rosa Luxemburgo.

Mas enquanto estamos sob esse sistema, nossa maior arma é a nossa organização. Nos organizarmos para criar comitês de bairro em defesa das mulheres, nos organizarmos para exigir justiça pelas vítimas de violência doméstica e feminicídio, nos organizarmos para lutar por salário igual em trabalhos iguais, nos organizarmos para exigir o direito a legalização do aborto e a creches públicas e gratuitas para todas as crianças. Do medo individual e paralisante à organização coletiva e revolucionária: esse é o caminho para enfrentar a violência e barbárie cotidiana contra as mulheres e enfrentar a raiz da opressão: o sistema capitalista.

Nesse sentido, nos organizamos para construir um partido com um programa marxista e influência de massas, capaz de dirigir a classe trabalhadora até a vitória em sua luta por emancipação. Convidamos cada mulher que quer dar um basta na violência a se organizar! É por meio da luta coletiva e organizada que podemos enfrentar a barbárie e a violência imposta pelo capitalismo e pelo machismo. Do medo à organização, mulheres trabalhadoras! Organizem-se e lutem!

  • Justiça por Vitória Regina e por todas as vítimas de feminicídio! Pelo fim da violência contra as mulheres!
  • Prisão para os estupradores e agressores!
  • Por creches públicas, gratuitas e para todas as crianças!
  • Abaixo o assédio sexual no ambiente de trabalho!
  • Por lavanderias e refeitórios públicos, gratuitos e para todos! Abaixo a violência doméstica!
  • Casas de abrigo para mulheres e crianças em situação de violência doméstica!
  • Pleno emprego para a classe trabalhadora! Trabalho igual, salário igual!
  • Pela legalização do aborto e laicização das decisões do Es­tado!
  • Abaixo a guerra e o capitalismo!

Referências para escrita:

https://www.almg.gov.br/comunicacao/noticias/arquivos/A-cada-6-horas-uma-mulher-morre-vitima-de-feminicidio-no-Brasil

https://noticias.r7.com/minas-gerais/cidade-alerta/video/caso-clara-desavencas-necrofilia-e-briga-por-saudacao-nazista-podem-ter-motivado-assassinato-em-bh-13032025

https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2025-03/violencia-contra-mulher-aumentou-no-brasil-com-13-vitimas-por-dia

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