Fado Tropical e o golpe militar de 1º de abril de 1964

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Durante muito tempo era possível saber a posição política de uma pessoa no Brasil a partir da forma como ela designava este fato. Se falava em ‘Revolução de 31 de março’, já sabíamos que era alguém que apoiava os militares. Se, ao contrário, se referia ao ‘Golpe do 1° de abril’, era alguém que se opunha ao arbítrio. (Zilah Wendel Abramo)

Composta em 1973 para a peça “Calabar ou o elogio da traição”, Fado Tropical, de Chico Buarque e Ruy Guerra, nos apresenta, na superfície, uma crítica à colonização portuguesa, mas sob ela, carrega uma poderosa crítica à ditadura civil-militar instaurada em 1964. A riqueza dessa bela obra de Chico e Ruy nos permite discutir a poesia etc., porém o objetivo dessas breves linhas é tratar apenas de alguns versos relacionados diretamente ao contexto histórico em que a música surgiu e por que ela se tornou uma afronta à ditadura.

Desde o seu título, a música anuncia as referências simultâneas ao Brasil e Portugal. O fado, música tradicional portuguesa, se junta ao clima tropical brasileiro. Essa junção também é política. Assim como o Brasil, Portugal vivia sob um regime de exceção, a ditadura salazarista liderada por Marcello Caetano, que tinha como pilar os três F: Futebol, Fado e Fátima. Vamos aos versos:

“Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil,
Te deixo, consternado,
No primeiro abril.
Mas não sê tão ingrata,
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou.”

Em “Os Lusíadas”, de Camões, a musa apresentada na epopeia do poeta português é a própria pátria. A referência ao Brasil é encontrada no hino nacional: “Dos filhos deste solo és mãe gentil”. Logo em seguida, é mencionada a data oficial do “descobrimento” do Brasil, o dia 22 de abril de 1500. Mas o nosso primeiro abril, na música, também é o dia que marca o golpe militar. Isso porque, quando concretizado o golpe, logo de imediato a ideia de que os militares haviam tomado o poder no dia da mentira se espalhou, tornando-se uma ofensa ao regime. A saída que os militares encontraram foi, ironicamente, a utilização de uma mentira: o dia 1º de abril virou 31 de março. A primeira estrofe termina com a seguinte afirmação:

“Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal,
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal.”

Se no contexto da peça “tornar-se um imenso Portugal” trata de uma alegoria à subserviência ao colonialismo português nos anos 1970, a alegoria poderia tranquilamente se encaixar na submissão do regime militar ao imperialismo.

Porém, a própria ditadura conseguiu apresentar um novo significado à canção ao rejeitá-la. Os militares jamais admitiram o título de ditadura e, para eles, afirmar que o Brasil iria se tornar “um imenso Portugal” era o mesmo que dizer que estávamos vivendo sob uma ditadura. Como Chico mesmo afirmou, a carapuça serviu e a música se tornou uma ofensa.

Um ano após a criação de Fado Tropical, um novo fato político tornaria a canção mais uma vez subversiva. O estouro da Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974, pôs fim a quase 50 anos de ditadura. As massas foram às ruas e iniciaram uma nova etapa na história de Portugal. O que se iniciou como um embate contra a ditadura, logo se transformou numa verdadeira revolução proletária que quase tomou o poder num país do coração da Europa. Uma outra música de Chico Buarque, Tanto Mar, que foi reescrita após a derrota da revolução, mostrava o entusiasmo contagiante desse importante evento da história da classe operária.

Se antes Fado Tropical era uma denúncia de que o Brasil vivia sob uma ditadura, depois de 25 de abril afirmar que o Brasil seria “um imenso Portugal” ganhava um novo significado: era o mesmo que dizer que uma revolução poderia varrer os militares e a burguesia do poder.

Ontem, 31 de março, novamente a escória brasileira voltou a celebrar a ditadura. Para a classe trabalhadora não há nada para comemorar. Durante os 21 anos do regime militar, as condições de vida dos trabalhadores e da juventude foram brutalmente atacadas. Houve perseguição, repressão brutal àqueles que se opunham ao regime, tortura em quartéis, prisão de líderes operários, camponeses e estudantis. Milhares foram exilados ou forçados a se exilar. A cultura, a arte e a imprensa foram submetidas à censura e a liberdade de reunião e expressão deixou de existir. Reuniões políticas só aconteciam por meios considerados ilegais. Não há como comemorar a morte dos estudantes secundaristas Edson Luís de Lima Souto, Honestino Guimarães e dos mais de 500 estudantes, trabalhadores e camponeses – muitos considerados desaparecidos até hoje porque não foram encontrados os seus corpos.

A classe que se organizou e derrubou a ditadura nas ruas, que tentou construir um partido revolucionário e que inspirou Chico Buarque na criação de tantas obras que desnudam seus opressores não esqueceu das atrocidades iniciadas em 1964. Como disse o revolucionário Leon Trotsky, a verdade é revolucionária. Lembrar que o golpe se consolidou em 1º de abril não é apenas uma precisão histórica, é lembrar que hoje a classe dominante só sobrevive através da mentira, da repressão e da traição dos dirigentes da classe trabalhadora. Mas, assim como a ditadura foi derrubada, o capitalismo também será e pelas mãos da classe trabalhadora.

Confira a música e a letra, versão de nossa camarada Thaís Tolentino e o professor e músico Zaia Freire!

Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo…(além dasífilis, é claro)*
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora…

Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata
Arrebato um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito,
Desencontrado, eu mesmo me contesto

Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto

Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadura à proa
Mas o meu peito se desabotoa

E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa…

Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial

*Trecho original, vetado pela censura

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