Ódio, vingança e organização da classe trabalhadora e da juventude
Foto: Agustin PAULLIER / AFP
O assassinato de George Floyd pela polícia do Estado racista dos Estados Unidos da América colocou este país em definitiva ebulição. O assassinato de João Pedro pelas mãos dos destacamentos armados do Estado racista do Brasil também colocou em movimento setores de uma vanguarda. Mas estes não são os únicos motivos.
Donald Trump e Jair Bolsonaro são, desde o início, produtos da polarização da luta de classes em meio à crise do capitalismo, que pauperiza e aprofunda a miséria para os trabalhadores e a juventude. Eles são expressões fidedignas do capitalismo em sua fase senil, sem máscaras progressistas e de conciliação.
Nestes dias insurrecionais, onde décadas estão acontecendo em semanas, agudizadas pela crise sanitária da pandemia do covid-19, que por sua vez, é produto da anárquica economia de mercado, a classe trabalhadora e, especialmente, a juventude expressam ódio e desejo de vingança revolucionários.
Diante disso e diferente dos moralistas pequeno-burgueses, os revolucionários defendem tais sentimentos, que não surgem de uma abstração psicológica, mas das condições materiais que vivemos. São, portanto, sentimentos genuínos e fundamentais para a luta que derrubará este sistema podre e a construirá um novo mundo – um mundo socialista.
Assim, os métodos utilizados nas insurreições diárias e que abrangem todo o território dos Estados Unidos são nada mais que reflexos deste ódio da classe trabalhadora e da juventude, cansados da exploração, do racismo, de toda opressão e da miséria, enquanto veem em suas frentes bilionários usurpando suas riquezas e ordenando a morte de nossa classe, seja por meio de suas polícias, seja pela infecção de coronavírus.
Ao mesmo tempo, após anos de despolitização, desmobilização e desorganização da classe trabalhadora e da juventude, é normal que os explorados e oprimidos realizem atos de terrorismo individual. No entanto, uma atenção especial deve ser dada aos métodos para que todo esse ódio e disposição de luta seja canalizado para transformar radicalmente a sociedade e tudo aquilo que nela nos aflige. E sabemos que para isso é necessário a organização do movimento operário e da juventude em um partido revolucionário.
Para os marxistas, o partido revolucionário é formado por suas perspectivas, bandeiras, tradições, ideias e métodos organizativos, resumidos no seu programa. Este programa trata-se da essência da luta, seu guia para a ação, onde ancora-se a busca pelo apoio e recrutamento de novos militantes, que, neste período revolucionário, estão aos milhares à procura, mesmo que ainda inconscientemente, desta direção. Um exemplo concreto desta organização e guia é o Programa Emergencial para a Crise no Brasil[1] e a formação dos Comitês Fora Bolsonaro! Por um Governo dos Trabalhadores, sem patrões nem generais, nos quais a Esquerda Marxista e a Liberdade e Luta vêm impulsionando.
Mas por que é preciso organizar as ações sob um programa revolucionário?
Em 1911, Leon Trotsky produziu um breve artigo, produto da luta de classes na Rússia e na Europa em geral, onde atentou sobre erro do terrorismo individual. Isto é, métodos de atos heroicos, individuais ou de pequenos grupos, contra a propriedade privada ou pública e contra figuras execráveis das classes dominantes, enquanto ataques personificados.
O revolucionário marxista, que dirigiu o Exército Vermelho na Revolução de Outubro e na Guerra Civil russa contra dezenas de exércitos imperialistas – ou seja, muito longe de ser um pacifista -, explica que a burguesia chama qualquer organização e ato insurrecional da classe trabalhadora e da juventude como “terrorista”.
O objetivo da classe dominante com isso é colocar as massas, que ainda não estão inseridas nesta organização, contra as mobilizações até então realizadas. Um exemplo atual que reflete isso são as declarações de Trump, nos EUA, e de alguns políticos bolsonaristas, no Brasil, ao defenderem a classificação de grupos Antifas como terroristas.
Contudo, o que os exploradores mais temem, tanto em momentos de relativa calmaria, quanto em períodos revolucionários como o nosso, não são estes atos, mas a efetiva organização da classe trabalhadora e da juventude em greves, comitês de ação, produzindo sua imprensa independente, construindo seu partido revolucionário formado no marxismo com influência de massas e que ajude o proletariado na tomada revolucionária dos grandes meios de produção, estabelecendo organismos de duplo poder.
O principal exemplo histórico de maior relevância internacional dessa duplicidade deu-se em plena Rússia czarista em 1917. Sob um regime autocrata, sanguinário e genocida, a juventude e os trabalhadores construíram um poder paralelo ao Estado de Nicolau II, ao constituírem seus conselhos de fábricas, de estudantes, de bairros, de autodefesa e, por fim, de cidades e regiões. Nestes conselhos, guiados por suas assembleias, evidenciou-se a fraqueza das classes dominantes com a efetivação da unidade dos trabalhadores, com seus próprios organismos.
Mas isto seria possível no presente? Evidentemente sim. As próprias insurreições populares pelos EUA e por outros lugares do mundo, atropelando os partidos e sindicatos que se adaptaram à ordem burguesa, demonstra a viabilidade da formação de organismos democráticos da classe trabalhadora, em especial, os comitês de ação.
Há, porém, a igual necessidade da aproximação desta nascente vanguarda às ideias do marxismo. Isto possibilitará a formação de ferramentas organizativas como os conselhos e do próprio partido revolucionário.
Tanto neste texto de 1911, chamado Por que os marxistas se opõem ao terrorismo individual? – no qual indicamos a leitura -, quanto no Programa de Transição, de 1938, compreendemos com Trotsky a superioridade deste método. Isto é, dos comitês de greve, de fábrica e de locais de estudos e trabalho em geral diante de um mero fetichismo sindical ou dos atos individuais e de pequenos grupos revoltosos. Isto é candente neste momento, pois nem mesmo a pandemia está mais segurando os explorados e oprimidos em suas casas.
Estamos vendo greves contra as desumanas condições de trabalho, onde o peso da exploração redobrou. A organização dos estudantes tolhidos do conhecimento e do desenvolvimento pela imposição do EAD e pelos cortes na educação pública. A austeridade e todo mar de desculpas burguesas para ataques aos direitos. E assim, os atos em defesa das vidas negras assassinadas pelos Estados são somados por todo o ódio dos oprimidos contra o sistema capitalista.
Toda essa mobilização deve pautar a greve geral por tempo indeterminado, defendendo um programa transitório revolucionário, organizando-se em sua autodefesa.
Isto é possível com a prática de um método superior de mobilização e organização, onde há uma luta social com organização, formação e ebulição das massas, que evidenciam sua força perante o capital e seus representantes, desprendendo-se da ordem que reina na sociedade de classes. Ao passo que segundo o “método”, de atos individuais e heroicos, embora seja repleto de um conteúdo genuíno de disposição de luta e ódio de classe, podem assustar a classe dominante, mas não tirá-la do poder e, portanto, não conduzir a uma mudança efetiva na situação.
Quer dizer que o ódio que ferve em suas veias precisa ser organizado conscientemente, efetivando o processo da passagem da classe em si para a classe para si, colocando em xeque o sistema capitalista.
Essa análise não é uma escolha, mas a compreensão da realidade. O capitalismo não se baseia em monumentos, edifícios, ministros ou presidentes. Eliminar esses elementos, matá-los ou atear fogo em suas estruturas, não derrubará este modo de produção e sua sociabilidade opressora. A classe dominante sempre terá substitutos e capital para realizar novas construções, além de intensificar o peso da repressão com a justificativa de conter os “vândalos”. Além disso, atear fogo em bandeiras do Brasil, como ocorreu no Paraná no último final de semana ou na bandeira dos EUA, insufla e reorganiza a base de bolsonaristas ou supremacistas que estavam à procura de um motivo para começar a agir. O efeito desses atos acaba sendo o contrário do que pretendiam aqueles que se utilizaram de tais métodos.
Alguns poderão propagar que a influência de atos heroicos pode estimular as massas a saírem de suas casas para “matar o presidente e o burguês”. Porém, a história demonstra justamente o contrário. O impacto do terrorismo individual nas massas trabalhadoras, nos operários que são a classe mais revolucionária de nosso tempo, pode os afastam da organização e do movimento em ebulição.
Estes atos, caso não organizados, podem restringir-se em insurreições de vida curta. O Estado pode ceder alguma reivindicação ou, o mais provável, o peso da repressão irá dissipar a revolta, pois estes grupos não estarão organizados, nem em grandes quantidades para enfrentar o destacamento assassino da burguesia.
Não acreditamos, porém, que essas mobilizações nos Estados Unidos, por exemplo, irão se arrefecer, mas é preciso a formação da vanguarda revolucionária para essa efetiva organização.
Isto cristaliza-se com o entendimento da revolução não ser a soma de atos individuais ou de pequenos grupos, mas a intensificação da luta de classes e a organização do proletariado em uma política revolucionária com influência de massas. É a conquista o poder estatal com sua insurreição, formada pelos comitês de ação e seus próprios destacamentos armados, que tomam o poder do Estado.
E nossa conjuntura é implacável ao evidenciar que “as premissas objetivas da revolução proletária não apenas amadureceram, como já começaram a apodrecer”, ao passo que precisamos superar o principal entrave para a revolução proletária: a crise histórica das direções revolucionárias.
Assim, queremos reafirmar que todo sentimento de vingança e ódio de classe são as chamas da revolução acesas, expressando que não temos outra saída da barbárie capitalista senão a revolução socialista internacional. Por isso, nenhum moralismo pode existir neste momento, mas somente a moral revolucionária, que tem como seu único princípio a destruição violenta do capitalismo e a construção do socialismo sobre os escombro da velha sociedade.
Para isso, não pode-se barrar ou tergiversar o desejo de vingança do proletariado e da juventude, mas avivá-lo, arremessando litros de álcool neste fogo, dirigindo-o para sua definitiva guerra: a revolução, a tomada do poder do Estado e a reorganização da sociedade com a abolição do trabalho alienado e da propriedade privada dos meios de produção.
Assim, como diz Trotsky, os marxistas se opõem “aos atentados terroristas porque a vingança individual não nos satisfaz”. A conta que a burguesia deve pagar a classe trabalhadora e a juventude por anos de exploração e opressão é muito maior do que alguns prédios, carros e bandeiras queimadas.
Referências
[1] Esquerda Marxista. Programa Emergencial para a Crise no Brasil. Disponível em: <https://www.marxismo.org.br/programa-emergencial-para-a-crise-no-brasil/>. Acesso em: 2 jun. 20.
TROTSKY, Leon. Por que os marxistas se opõem ao terrorismo individual, 1911. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1911/11/terrorismo.htm?fbclid=IwAR2jEra9BE7MJJxzRHlhwcCBJAfHtNJTgyGgkVIKmz_ydlrUseRoyQEK_zY>. Acesso em: 02 jun. 2020.
TROTSKY, Leon. Programa de Transição para a revolução socialista: a agonia mortal do capitalismo e as tarefas da IV Internacional. Traduzido por Ana Beatriz da Costa Moreira. São Paulo: Sundermann, 2017