Paulo Freire, um comunista?

Já na campanha eleitoral, o então candidato Jair Bolsonaro, em um debate, expressou-se da seguinte forma: “Entrar com um lança-chamas no MEC para expulsar Paulo Freire lá de dentro.” A partir daí o nome de Paulo Freire passou a ser fonte de infindáveis debates entre os acadêmicos, estudantes, professores e, obviamente, nas redes sociais.

O nome de Paulo Freire foi vinculado ao marxismo e os debates seguem acalorados. É preciso entender por que, para o governo Bolsonaro, é preciso combater Paulo Freire mesmo que ele nunca tenha sido um marxista.

Há, como explicamos em muitos textos, um salto de qualidade na situação política com a vitória de Bolsonaro. O acirramento na luta de classes, onde não há espaço para nenhum tipo de conciliação, é uma guerra aberta, de classes.

Nesse cenário, a confusão teórica também é uma ótima aliada de Bolsonaro. Chamar de marxistas as políticas adotadas pelo PT ao longo da história é interessante ao governo. Assim combatem de uma só vez os conciliadores e os marxistas.

A tarefa deste governo é atacar todos os direitos dos trabalhadores. Para isso é preciso confundir a classe e colocar todas as ideias em um balaio, onde tudo se confunda. Por isso o combate aberto a Paulo Freire, já que ele é o primeiro, no Brasil, a propor a política educacional que viria a ser a base de todos os governos petistas. E aqui está a importância de chamar aquela política de marxista, pois é uma política que foi colocada à prova e que já tem o rechaço dos trabalhadores.

Paulo Freire nunca foi um marxista, aliás nunca se reivindicou do marxismo. Reconhecia o marxismo como uma “influência”, assim como reconhecia diversas outras teorias. Na sua obra mais famosa ele se caracteriza como um humanista e defende esta ideia do começo ao fim do ensaio.

O educador brasileiro, que ganhou reconhecimento mundial por desenvolver um trabalho sobre a alfabetização de adultos, sempre manteve vínculos com o aparelho de Estado e a Igreja católica.

Desenvolveu projetos no governo João Goulart, foi exilado com o golpe de 64. Lecionou na Universidade de Harvard na década de 70, foi consultor do Conselho Mundial das Igrejas (CMI), em Genebra (Suíça), desenvolveu trabalhos para a ONU.

Quando retorna ao Brasil filia-se ao então nascente Partido dos Trabalhadores (PT) e no governo Petista de Luiza Erundina (1989-1993) é nomeado Secretário de Educação da cidade de São Paulo. É na gestão petista que Paulo Freire apresenta a proposta de uma educação pública, popular e democrática, em vez de uma educação pública, gratuita e para todos. Ou seja, é aí que são dados os primeiros passos do que viria a ser a política educacional adotada pelo PT em todos os governos: parcerias público-privadas, Fies, Prouni, sistema de cotas, orçamento participativo etc.

Se é verdade que Paulo Freire se empenhou em uma política de valorização do professor em São Paulo, é verdade também que ele alimentou a ideia, defendida arduamente na Pedagogia do Oprimido e na Pedagogia da Autonomia, de que para mudar o mundo é preciso que nos humanizemos, e que é na escola, com o professor como “liderança social”, que isso se dará. Portanto, para Freire, a escola é um ambiente de transformação da sociedade.

A educação pública, gratuita e para todos é para os marxistas uma conquista dos trabalhadores. Conquistamos o direito de ter acesso ao conhecimento que a humanidade acumulou ao longo da história, mas a escola não é um partido, ela é um ambiente para todos, um ambiente de socialização do conhecimento.

É totalmente idealista acreditar que é ela que transformará a sociedade. Para transformar a sociedade, a forma de organização é o partido revolucionário e não a escola.

São essas ideias equivocadas que fundamentam muitos bem intencionados que querem flexibilizar a grade curricular, mas é também o fundamento dos lunáticos do projeto “Escola sem Partido”. Além disso, foram estas políticas que nortearam o projeto de Reforma do Ensino Médio do governo Dilma, aprofundado e aprovado por Temer.

É na gestão Paulo Freire que se dão as primeiras ideias de “Orçamento Participativo”, de Conselhos Paritários e de políticas paliativas. Como o próprio Paulo Freire diz, um sistema menos perverso: “Criação de uma sociedade menos perversa, menos discriminatória, menos racista, menos machista que esta. Uma sociedade mais aberta, que sirva aos interesses das classes populares sempre desprotegidas e minimizadas e não apenas aos interesses dos ricos, dos afortunados, dos chamados ‘bem nascidos’” (Freire, maio de 1991, apud Gadotti, 1996, p. 103). Portanto, uma sociedade “conciliadora”.

É compreensível, portanto, o combate também aos conciliadores quando o governo se decidiu por uma guerra aberta e não pela conciliação.

A “democratização” petista nada tem a ver com as propostas marxistas e sim com o reformismo. Os conselhos russos eram de poder e não de “participação”, não eram subjetividades, eram todo poder ao povo. Os conselhos petistas, por outro lado, são a divisão das migalhas e o atrelamento das organizações operárias e estudantis ao Estado. Aliás, um dos eixos da gestão Paulo Freire era a criação “institucional” de grêmios, ou seja, ao invés de grêmios livres e independentes, estes seriam institucionalizados, o que é contrário a toda a história do movimento estudantil que se forjou na luta contra a institucionalização. Todas essas ideias podem ser encontradas nos documentos elaborados durante a gestão Paulo Freire na prefeitura de São Paulo. É também ali que se iniciam as discussões sobre a flexibilização da grade curricular, a ideia de que o povo precisa aprender aquilo que faz sentido a ele, de forma totalmente flexível e que, ao fim e ao cabo, é a Contrarreforma do Ensino aprovada por Temer.

Paulo Freire era um reformista em toda a sua obra e em sua prática demonstrava isso.  Substituir a ideia de partido revolucionário pela ideia de uma escola popular é uma contradição com o marxismo. Como explicou Marx em Crítica ao Programa de Gotha, “É algo digno da presunção de Lassalle imaginar que, por meio de subvenção estatal, seja possível construir uma nova sociedade da mesma forma que se constrói uma ferrovia!”.

Não queremos aqui entrar em um debate sobre as intenções de Paulo Freire.  Falamos aqui de fatos e de teoria que podem ser encontradas, tanto na obra de Freire como também nas políticas de governo adotadas pelo PT.

Aos revolucionários cabe a luta contra o sistema, pela derrubada de todas essas estruturas. Não há como reformar o que já está podre e não há espaço para a conciliação.

PUBLICADO EM MARXISMO.ORG

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