SEGUNDA MARXISTA: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO MARXISMO – PARTE 4 (FINAL)
Nesta edição da Segunda Marxista, apresentamos a quarta e última parte do artigo publicado em 1908 por Georgi Valentinovitch Plekhanov, um dos principais responsáveis por introduzir o marxismo na Rússia e fundador da social-democracia russa. Nesse artigo, ele aborda a concepção materialista de Feuerbach e suas limitações como ponto de partida para Marx e Engels elaborarem o materialismo histórico-dialético.
XIII
O falecido Nicolas Mikhailovsky afirmava outrora, em sua polêmica conosco, que a teoria histórica de Marx jamais teria larga difusão no mundo dos sábios. Acabamos de ver e ainda veremos que isto não é bem exato. Mas antes é necessário desfazer ainda alguns outros mal entendidos que prejudicam a compreensão do materialismo histórico.
Se nos propuséssemos a expor brevemente a concepção de Marx e Engels sobre a relação entre a célebre “base” e a não menos célebre “superestrutura”, chegaríamos a isto:
- Estados das forças produtivas;
- Relações econômicas condicionadas por estas forças;
- Regime sócio-político, edificado sobre uma “base” econômica dada;
- Psicologia do homem social, em parte determinada diretamente pela economia, em parte por todo o regime sócio-político edificado sobre ela;
- Ideologias diversas refletindo esta psicologia.
Esta fórmula é suficientemente ampla para que todas as “formas” do desenvolvimento histórico encontrem aí seu lugar; ao mesmo tempo é completamente estranha àquele ecletismo que não sabe ir além da ação recíproca entre as diferentes forças sociais e nem sequer duvida que o fato da ação recíproca entre estas forças não resolve ainda a questão de sua origem. Nossa fórmula é uma fórmula monista. Esta fórmula monista está essencialmente impregnada de materialismo.
Hegel dizia na Filosofia do Espírito: “O espírito é o único princípio motor da história”. Não se pode pensar de outra forma, atendo-se ao ponto de vista do idealismo segundo o qual o ser é condicionado pelo pensar. O materialismo de Marx mostra de que maneira a história do pensamento é condicionada pela história de ser. Mas o idealismo não impediu Hegel de reconhecer a ação da economia como a de uma causa “tornada efetiva por intermédio do desenvolvimento do espírito”.
Da mesma forma, o materialismo não impediu Marx de reconhecer, na história, a ação do “espírito” como a de uma força cuja direção, em cada época, é determinada pelo desenvolvimento da economia.
Que todas as ideologias têm uma raiz comum, a saber, a psicologia da época em questão, não é difícil de compreender, e todos se convencerão disso pondo-se, ainda que superficialmente, à corrente dos fatos. Como exemplo, citaremos, dentre outros, o romantismo francês. Vítor Hugo, Eugèrne Delacroix e Hector Berlioz trabalhavam em três domínios artísticos totalmente diferentes. Estavam os três, bastante distanciados um do outro. Pelo menos Vítor Hugo não gostava da música e Delacroix desprezava os músicos “românticos”. Apesar disso e com razão, denomina-se estes três homens notáveis, de “a trindade romântica”. Em suas obras se refletiu uma mesma psicologia.
Pode-se dizer que o quadro Dante e Virgílio, de Delacroix expressa o mesmo estado de alma que o que ditou a Vítor Hugo seu Hernâni e a Berlioz sua Sinfonia Fantástica. Isto, seus contemporâneos o sentiam, ou seja, aqueles que se interessavam seriamente por literatura e arte. Clássico em seus gostos, Ingres chamava Berlioz “horrível músico, o monstro, o bandido, o Anticristo”. Isto lembra as opiniões lisonjeiras expressas pelos clássicos em relação a Delacroix, cujo pincel eles qualificavam de “vassoura ébria”. Sabemos que Berlioz, assim como Vítor Hugo, teve que sustentar verdadeiras batalhas. Sabemos também que ele obteve a vitória após esforços incomparavelmente maiores que os de Hugo, e bem mais tarde. Por que foi assim, sendo que a psicologia expressa em sua música foi a mesma que encontrara sua expressão na poesia e no drama românticos?
Para responder a esta questão, seria necessário explicar muitos detalhes na história comparada da música e da literatura francesas, detalhes que permanecerão talvez sem explicação durante muito tempo, senão para sempre. Mas o que não pode suscitar nenhuma dúvida, é que a psicologia do romantismo francês só se tornará compreensível quando a considerarmos a psicologia de uma classe determinada, situada em condições sociais e históricas determinadas.
J. Tiersot diz:
“O movimento de 1830 na literatura e na arte estava longe de ter um caráter de revolução popular”.
É bem verdade. O movimento em questão era essencialmente burguês. Mas ainda não é tudo. No interior da própria burguesia, tampouco, ele tinha a simpatia geral. Na opinião de Tiersot, ele expressava a tendência de um pequeno grupo de “eleitos”, suficientemente perspicazes para saber descobrir o gênio lá onde ele se abrigava. Tiersot constata com isso, de forma superficial — ou seja, idealista —, o fato que a burguesia da época não compreendia grande parte das aspirações e sentimentos que, na literatura e na arte, animavam então seus próprios ideólogos. Semelhante desacordo entre os ideólogos e a classe cujas tendências e gostos eles expressavam não é coisa rara na história. Este desacordo explica muitas particularidades no desenvolvimento intelectual da humanidade.
No caso, ele havia provocado, dentre outras, a atitude de desprezo da “elite” “refinada” para com os burgueses “obtusos”, atitude que, até nossos dias, induz em erro as pessoas ingênuas e as torna decididamente incapazes de compreender o caráter arquiburguês do romantismo. Mas, também aqui, a origem e o caráter de um tal desacordo só podem ser explicados, em última análise, pela situação econômica da classe social no seio da qual este desacordo se manifestou. Aqui, como em tudo, somente o ser elucida os “segredos” do pensar. E eis porque aqui — como aliás em tudo — só o materialismo é capaz de dar uma explicação científica da “marcha das ideias”.
XIV
Em seus esforços para explicar esta marcha, os idealistas jamais souberam olhar atentamente da perspectiva do “curso das coisas”. Assim, Taine explica as obras de arte pelas propriedades do meio que cerca o artista. Mas quais? As propriedades psicológicas, ou seja, aquela psicologia geral que é própria a uma época dada e cujas propriedades têm, também, necessidade de uma explicação. O materialismo, explicando a psicologia de uma sociedade ou de uma classe dada, se refere à estrutura social criada pelo desenvolvimento econômico, mas Taine, que é idealista, explicava a origem do regime social pela psicologia social, o que o fez enredar-se em contradições sem saída. Os idealistas de todos os países não gostam de Taine agora.
Compreende-se porquê: por “meio”, ele entende a psicologia da massa, a psicologia do “homem médio” de uma época e de uma classe determinadas e essa psicologia é, para ele, a última instância para qual o estudioso pode apelar. Para Taine, portanto, o “grande” homem, pensa e sente sempre inspirando-se no homem “médio”, nas “mediocridades”. Ora, isto é, além de falso, embaraçoso para os “intelectuais” burgueses, sempre propensos a se situar mais ou menos na categoria dos grandes homens. Taine foi o homem que, tendo dito “A”, se mostrou impotente para pronunciar “B”, arruinando assim a própria causa. Para sair das contradições nas quais se enredara, não havia outra saída, salvo no materialismo histórico, que reserva um lugar tanto para o “indivíduo” como para o “meio”, tanto para as pessoas “médias” como para os grandes “eleitos da sorte”.
Da Idade Média até 1871, inclusive, a França foi o país onde a evolução social e política e a luta entre as diferentes classes sociais se revestiram do caráter mais típico da Europa Ocidental. Dito isso, será interessante salientar que é precisamente na França que se pode descobrir mais facilmente a relação causal existente entre o desenvolvimento e a luta acima mencionada de um lado, e a história das ideologias de outro.
Falando da razão pela qual se difundiram, na época da Restauração na França, as ideias da escola teocrática sobre a filosofia da história, R. Flint observa:
“No entanto, o sucesso de tal teoria permaneceria inexplicável se o caminho não lhe tivesse sido preparado pelo sensualismo de Condillac e se ela não tivesse sido manifestamente destinada a servir os interesses de outra teoria que representava as ideias de vasta classe da sociedade francesa após a Restauração”.
Isto é correto, evidentemente. E é fácil compreender qual era a classe que havia encontrado, na escola teocrática, a expressão ideológica de seus interesses. Mas aprofundemos nosso estudo da história francesa e coloquemo-nos a seguinte questão: não seria possível descobrir também as causas sociais do sucesso do sensualismo na França de antes da Revolução?
O movimento intelectual do qual haviam saído os teóricos do sensualismo não expressava, por sua vez, as tendências de certa classe social? Incontestavelmente. Este movimento expressava as tendências de emancipação do terceiro estado francês. Se fôssemos mais longe neste sentido, veríamos que, por exemplo, a filosofia de Descartes reflete muito vivamente as necessidades da evolução econômica e a relação das forças sociais de sua época. Se nos reportássemos, enfim, ao século XIV e fixássemos nossa atenção sobre os romances de cavalaria que tiveram grande sucesso na corte e entre a aristocracia francesa da época, veríamos que estes romances eram o espelho da vida e das preferências desta classe. Em poucas palavras, neste notável país, que há pouco tempo estava no direito de dizer que “caminhava à testa das nações”, a curva do movimento intelectual toma urna direção paralela à curva do desenvolvimento econômico e à do desenvolvimento social e político, condicionado também pelo precedente.
Todos estes senhores que haviam “criticado” Marx em diferentes tons não faziam a menor idéia de tudo isto. Não suspeitavam que se a crítica é algo belo e louvável, é necessário criticar com conhecimento de causa, quer dizer, compreender o que se critica. Criticar um dado método de investigação científica é determinar até que ponto ele pode servir para descobrir a relação causal entre os fenômenos. Mas só se pode fazê-lo por meio da experiência, ou seja, pela aplicação deste método. Criticar o materialismo histórico é tentar utilizar o método de Marx e Engels no estudo do movimento histórico da humanidade. Somente desta forma podemos descobrir os aspectos fortes e fracos deste método. “The proof of the pudding is in the eating” (a prova do pudim está no ato de comer), disse Engels, explicando sua teoria do conhecimento. Isto também é verdade para o materialismo histórico. Para criticar este prato, é necessário inicialmente tê-lo experimentado. Para experimentar o método de Marx e Engels é necessário saber dele servir-se. Mas servir-se adequadamente, pressupõe uma preparação científica incomparavelmente mais séria e um trabalho intelectual bem mais persistente que eloquentes discursos pseudocientíficos sobre o caráter “unilateral” do marxismo.
Os “críticos” de Marx dizem, uns com mágoa, outros com reprovação e ainda outros com um entusiasmo vil, que até o presente não foi editado sequer um livro fornecendo uma justificação teórica do materialismo histórico. Por um tal livro, eles entendem comumente algo no gênero de um tratado sucinto da história universal do ponto de vista materialista. Mas, neste momento, tal tratado não poderia ser escrito nem por estudioso isolado, por mais universais que pudessem ser seus conhecimentos, nem por todo um grupo de estudiosos. Para tal livro, não existem materiais suficientes e nem tempo.
Estes materiais só podem ser acumulados por meio de longa série de investigações sobre os detalhes dos diversos domínios da ciência e feitas com a ajuda do método de Marx. Falando de outra maneira, os “críticos” que exigem um tal livro queriam que o trabalho fosse iniciado pelo fim, ou seja, que fosse previamente explicado do ponto de vista materialista o próprio processo que se trata, propriamente falando, de expor. De fato, este livro se escreve precisamente na medida em que os estudiosos contemporâneos — o mais frequentemente sem se dar conta, como já dissemos — se veem obrigados, pelo estado atual da sociologia, a dar uma explicação materialista dos fenômenos que estudam. Por si sós, os exemplos anteriormente citados são uma prova suficiente que houve, até hoje, muito poucos destes estudiosos.
Laplace diz que, após a grande descoberta de Newton, cinquenta anos decorreram antes que ela fosse completada por outras, descobertas de alguma importância. Foi necessário a esta grande verdade todo este tempo para ser compreendida por todos e para vencer os obstáculos que lhe eram lançados pela teoria dos turbilhões e possivelmente pelo amor-próprio dos matemáticos contemporâneos de Newton.
Os obstáculos que encontra o materialismo moderno, enquanto teoria harmoniosa e consequente, são incomparavelmente mais consideráveis que os que encontrou em seu aparecimento a teoria de Newton. Contra ele se dirige direta e resolutamente o interesse da classe atualmente dominante, a cuja influência se submetem necessariamente a maior parte dos estudiosos de nossos dias. A dialética materialista “que não se inclina diante de nada e considera as coisas sob seu aspecto transitório” não pode gozar da simpatia da classe conservadora que é atualmente, no Ocidente, a burguesia.
Ela é a tal ponto contrária ao estado de espírito desta classe que se apresenta naturalmente a seus ideólogos como algo intolerável e inconveniente, como algo que não é digno nem de “pessoas honestas” em geral, nem em particular dos “respeitáveis homens de ciência”. Não é de admirar que cada um destes “respeitáveis” sábios se considere moralmente obrigado a afastar de si toda suspeita de simpatia pelo materialismo. E, muito frequentemente, ele o proclama com tanto mais força quanto persiste, em suas pesquisas especiais, em manter-se num ponto de vista materialista. Daí resulta uma espécie de “mentira convencional” semiconsciente que só pode ter influência das mais prejudiciais sobre o pensamento teórico.
XV
A “mentira convencional” de uma sociedade dividida em classes adquire proporções mais consideráveis na mesma proporção que a ordem de coisas existente é abalada pela ação do desenvolvimento econômico e da luta de classes por ele provocada. Marx acertadamente disse que quanto mais se desenvolvem os antagonismos entre as forças produtivas crescentes, mais a ideologia da classe dominante se impregna de hipocrisia. E quanto mais a vida desmascara a natureza mentirosa dessa ideologia, mais a linguagem desta classe se faz sublime e virtuosa (Sankt Max. Dokumente des Sozialismus, agosto 1904, p. 370-371).
A justeza deste pensamento salta aos olhos com evidência particular agora que, por exemplo, na Alemanha, a propagação da corrupção, revelada pelo processo de Harden-Moltke, caminha a par com o “renascimento do idealismo” em sociologia. E entre nós, encontra-se, mesmo nas fileiras dos “teóricos do proletariado”, pessoas que não compreendem a causa social deste “renascimento” e se submetem à sua influência. Tal é o caso dos Bogdanov, Bazarov e outros.
De resto, as vantagens que o método de Marx proporciona a todo investigador são tão consideráveis que elas começam a ser plenamente reconhecidas mesmo pelas pessoas que se submetem de bom grado à “mentira convencional” de nosso tempo. Entre estas pessoas é necessário incluir, por exemplo, o americano Seligman, autor do livro intitulado The Economic Interpictation of History, editado em 1909. Seligman reconhece abertamente que aquilo que fazia recuar os estudiosos diante da teoria do materialismo histórico, eram as deduções socialistas tiradas por Marx. Mas ele acha que se pode satisfazer a cabra e ao mesmo tempo salvar a couve, que se pode ser partidário do materialismo econômico ”e entretanto permanecer adversário do socialismo”. “O fato que as concepções econômicas de Marx fossem erradas”, diz ele, “não tem nenhuma relação com a veracidade ou a falsidade de sua filosofia da história”.
Na realidade, as concepções econômicas de Marx estavam estreitamente ligadas às suas concepções históricas. Para bem compreender o Capital, é absolutamente indispensável aprofundar bem o célebre prefácio a Zur Kritik der politischen Oekonomie e assimilá-lo. Mas nós não poderíamos nem expor as concepções econômicas de Marx, nem elucidar o fato incontestável de que elas são parte integrante da doutrina chamada materialismo histórico. Acrescentaremos apenas que Seligman é um homem suficientemente “respeitável” para se intimidar também com o materialismo.
Este “partidário” do materialismo econômico considera que é levar as coisas a um extremo intolerável, procurar explicar “a religião e até mesmo o cristianismo” por causas econômicas. Tudo isto mostra claramente a que ponto estão profundamente enraizados os preconceitos e portanto também os obstáculos que a teoria de Marx deve combater. E, apesar disso, o próprio fato do lançamento do livro de Seligman, assim como o caráter das reservas que formula, permitem, numa certa medida, alimentar esperanças que o materialismo histórico — mesmo que sob forma lapidada, “depurada” — terminará por ser reconhecido pelos ideólogos da burguesia que todavia ainda não renunciaram a pôr em ordem suas concepções históricas.
Mas a luta contra o socialismo, o materialismo e outros extremos desagradáveis, pressupõe a existência de certa “arma espiritual”. Esta arma espiritual para a luta contra o socialismo é sobretudo, atualmente, aquilo que chamamos “economia política subjetiva”, completada por uma estatística mais ou menos habilmente violentada. A principal fortaleza na luta contra o materialismo é representada por todas as variedades possíveis de kantismo. Na sociologia, utiliza-se para este fim o kantismo como uma doutrina dualista, que rompe a relação existente entre o ser e o pensar. Como o exame das questões econômicas não faz parte de nosso plano, nos limitaremos aqui à apreciação da arma filosófica da qual se serve a reação burguesa no domínio ideológico.
No fim de sua brochura Socialismo Utópico e Socialismo Científico, Engels observa que quando os poderosos meios de produção criados pela época capitalista se tornarem propriedade social e a produção tenha sido organizada de forma consoante às necessidades da sociedade, os homens se tornarão finalmente senhores da natureza e de si próprios. É somente então que eles começarão a fazer conscientemente sua história; é somente então que as causas sociais acionadas por eles terão cada vez mais os efeitos desejáveis.
“A humanidade saltará do reino da necessidade para o reino da liberdade”.
Estas palavras de Engels suscitaram as objeções de todos aqueles que, refratários em geral à idéia dos “saltos”, não podiam e não queriam de forma alguma compreender o “salto” do reino da necessidade para o da liberdade. Tal “salto” lhes parecia mesmo estar em contradição com a concepção da liberdade que o próprio Engels havia formulado na primeira parte do Anti-Dühring. Para explicar em que consiste a confusão em suas ideias a este respeito, somos obrigados a relembrar o que Engels dissera no livro em questão.
Explicando as palavras de Hegel:
“A necessidade só é cega na medida em que não é compreendida”.
Engels afirmava que a liberdade consiste “no domínio exercido sobre nós e sobre a natureza externa, domínio fundado no conhecimento das necessidades inerentes à natureza”. Engels desenvolveu este pensamento de forma suficientemente clara para aqueles que estão ao corrente da doutrina de Hegel, à qual ele se referia. Mas o mal consiste precisamente em que os kantistas modernos só fazem “criticar” Hegel, sem contudo estudá-lo. Não conhecendo Hegel, não podiam tampouco conhecer Engels. Eles faziam, ao autor de Anti-Dühring, a objeção que não há liberdade onde há submissão à necessidade. Isto era bastante lógico da parte de pessoas cujas concepções filosóficas estão impregnadas de um dualismo que não sabe unir o pensar ao ser.
Do ponto de vista deste dualismo, o “salto” da necessidade para a liberdade, permanece, com efeito, totalmente incompreensível. Mas a filosofia de Marx — como a de Feuerbach — proclama a unidade entre o ser e o pensar. E se bem que ela compreenda — como vimos anteriormente, ao falar de Feuerbach — esta unidade, diferentemente do que compreendia o idealismo absoluto, não se diferencia entretanto da teoria de Hegel na questão que nos ocupa, a da relação entre a liberdade e a necessidade.
Todo o problema reside em saber o que é preciso entender exatamente por necessidade. Aristóteles já havia indicado que o conceito da necessidade tem muitas nuances: é necessário usar o medicamento para curar; é necessário respirar para viver; é necessário fazer uma Viagem a Egina para recuperar uma soma de dinheiro. É uma necessidade, por assim dizer, condicional: é preciso que respiremos, se queremos viver, é preciso usar um medicamento se nós queremos livrar de uma doença e assim por diante. O homem está constantemente enfrentando necessidade deste gênero, no processo de sua ação sobre a natureza exterior: é-lhe necessário semear, se quer colher; lançar a flecha se quer matar a caça: prover-se de combustível se quiser colocar em movimento uma maquina a vapor e assim por diante.
Se nos colocamos sob o ponto de vista da “crítica neokantista” de Marx, é preciso admitir que, nesta necessidade condicional, existe também um elemento de submissão. O homem seria mais livre se pudesse satisfazer suas necessidades sem dispender nenhum esforço. Ele se submete à natureza, mesmo quando a obriga a servi-lo. Mas esta submissão é a condição de sua libertação: submetendo-se à natureza, aumenta com isto, seu poder sobre ela, ou seja, sua liberdade. Seria o mesmo no caso onde a produção social estivesse organizada de forma racional. Ao se submeter às exigências da necessidade técnica e econômica, os homens poriam termo a este regime insensato que faz com que sejam dominados por seus próprios produtos, ou seja, aumentariam formidavelmente sua liberdade. Aqui também sua submissão se tornaria a fonte de sua libertação.
E não é tudo. Afeitos à ideia de que o pensar está separado do ser por um abismo, os “críticos” de Marx só conhecem uma única nuança da necessidade: utilizando ainda uma vez os termos de Aristóteles, eles representam a necessidade unicamente como uma força que nos impede de agir segundo nosso desejo e que nos obriga a fazer o que é contrário a ele. Tal necessidade está, com efeito, em oposição à liberdade e não pode deixar de pesar sobre nós. Mas é preciso não perder de vista, tão pouco aqui, que uma força que se apresenta ao homem como força exterior de coerção indo de encontro a seu desejo, pode, em outras circunstâncias, apresentar-se a ele sob aspecto totalmente diferente. Tomemos, como exemplo, a questão agrária tal como se nos apresenta atualmente na Rússia.
A “expropriação obrigatória da terra” pode parecer ao proprietário territorial inteligente, a um “cadete”, uma necessidade histórica mais ou menos triste — mais ou menos triste segundo o montante da “compensação justa” que lhe é atribuída. Mas aos olhos do camponês, que acalenta a ideia de se ver atribuir aquilo que ele chama a “terrinha”, a necessidade mais ou menos triste será, ao contrário, unicamente esta “compensação justa”, enquanto a “expropriação obrigatória” lhe parecerá, seguramente, ser a expressão de sua livre vontade e o penhor mais precioso de sua liberdade.
Tocamos aqui no ponto talvez mais importante da doutrina da liberdade, que não havia sido mencionada por Engels, pela única razão que este ponto era compreensível, sem maiores explicações a quem quer que tenha seguido a escola de Hegel.
Em sua filosofia da religião, Hegel diz: “Die Freiheit ist dies; nichts zu wollen als sich“, que significa: “A liberdade consiste em nada querer além de si mesmo” . Esta observação ilumina toda a questão da liberdade na medida em que concerne à psicologia social; o camponês que reivindica a “terrinha” ao grande proprietário não quer “nada além de si mesmo”. Mas o que o reformista agrário “cadete” que consente em lhe ceder esta “terrinha” quer, não é mais a “si mesmo”, mas apenas aquilo que a história o obriga. O primeiro é livre, o segundo se submete sabiamente à necessidade.
Seria o mesmo para o proletariado que transformaria os meios de produção em propriedade social e organizaria a produção social em novas bases: ele não quer nada além de si mesmo. E ele se sentiria completamente livre. Mas no que concerne aos capitalistas, eles se sentiriam na melhor das hipóteses na situação do reformista agrário que aceitara o programa agrário dos “cadetes”; eles só poderiam constatar que a liberdade é uma coisa e a necessidade histórica outra.
Temos a impressão que aqueles que criticavam Engels não o compreendiam e uma das razões dessa incompreensão é que, se eram capazes de se colocar mentalmente na situação de um capitalista, não podiam, de maneira alguma, imaginar a si próprios na “pele” dos proletários. E consideramos que para isto havia também uma causa social particular, causa econômica em última instância.
XVI
O dualismo para o qual se inclinam atualmente os ideólogos da burguesia dirige ainda uma outra censura ao materialismo histórico. Na pessoa de Stammler, ele o reprova por não levar absolutamente em conta a teleologia social. Esta segunda censura, aliás estreitamente relacionada à primeira, não é menos desprovida de fundamento.
Marx disse:
“Para produzir, os homens contraem entre si relações determinadas”.
Stammler vê nesta fórmula a prova de que o próprio Marx, a despeito de sua teoria, não pôde evitar as considerações teleológicas. As palavras de Marx significam, em sua opinião, que os homens contraem conscientemente as relações sem as quais a produção é impossível. Portanto, estas relações são o resultado de uma ação levada a cabo tendo em vista o objetivo a atingir.
Não é difícil mostrar em que ponto deste raciocínio Stammler peca contra a lógica e comete um erro que marcara todas as suas observações críticas posteriores.
Tomemos um exemplo: Selvagens caçadores vão perseguir uma presa, um elefante. Para isto, se reúnem e dispõem suas forças numa certa ordem. Onde está o objetivo? Onde está o meio de atingi-lo? Obviamente, o objetivo consiste em capturar ou matar o elefante e o meio é a perseguição do animal com todas as forças conjugadas. Pelo quê o objetivo é sugerido? Pelas necessidades do organismo humano. Pelo quê o meio é determinado? Pelas condições da caça. As necessidades do organismo dependem do homem, de sua vontade? Não, elas não dependem e, aliás, isto compete à fisiologia e não à sociologia. Que poderemos aqui pedir à sociologia? Que explique por que razão os homens, buscando satisfazer suas necessidades — no caso, a de alimentação —, contraem, num momento, algumas relações e, num outro, outras totalmente diferentes. Este fato, a sociologia — na pessoa de Marx — explica pelo estado das forças de produção. Agora, o estado destas forças depende da vontade dos homens e dos objetivos que perseguem? A sociologia, de novo na pessoa de Marx responde: não, não depende. E se não depende, é porque estas forças aparecem em virtude de certa necessidade determinada por condições dadas e situadas fora do homem.
O que se conclui disso? Que se a caça é uma atividade de acordo com o objetivo que persegue o selvagem, este fato incontestável em nada diminui o valor deste pensamento de Marx: as relações de produção que se estabelecem entre os selvagens que se entregam à caça se estabelecem em virtude de condições completamente independentes desta atividade, de acordo com o objetivo perseguido. Em outros termos, se o caçador primitivo aspira conscientemente matar o quanto for possível de caça, daí não decorre ainda que o comunismo, próprio à vida que leva o caçador, tenha surgido como produto de acordo com o objetivo de sua atividade. Não, o comunismo nasce, ou mais exatamente, se conservou — visto que se constituiu bem antes — como o resultado inconsciente, ou seja, necessário, desta organização do trabalho cujo caráter era totalmente independente da vontade dos homens. É precisamente isto que não compreendeu o kantista Stammler; ele tomou aqui um falso caminho ao mesmo tempo que arrastou consigo nossos Strouvé, Boulgakov e outros marxistas temporários, cujos nomes formam uma legião.
Continuando suas observações críticas, Stammler diz que, se o desenvolvimento social se efetuasse exclusivamente em virtude da necessidade causal, toda tendência consciente a contribuir com este desenvolvimento seria um grande contra senso. De acordo com ele, de duas, uma: ou eu considero um fenômeno qualquer necessário, quer dizer, inevitável e então eu não tenho nenhuma necessidade de contribuir para seu aparecimento; ou minha contribuição é necessária para que este fenômeno possa se produzir e então não se pode chamá-lo de necessária. Quem, afinal, procura contribuir com o nascer do sol, nascer necessário, ou seja, inevitável?
Aqui se manifesta de uma maneira notável o dualismo próprio às pessoas educadas na filosofia de Kant: para elas, o pensar está sempre separado do ser.
O nascer do sol não está ligado de forma alguma, nem como causa, nem como consequência, às relações sociais dos homens. E por isto podemos opor, enquanto fenômeno da natureza, às aspirações conscientes dos homens que tampouco têm alguma relação causal com ele. Mas não é isso que acontece com os fenômenos sociais da história. Nós já sabemos que a história é feita pelos homens. As aspirações humanas, portanto, não podem ser um fator exclusivo do movimento histórico. Mas a história é feita pelos homens de certa maneira e não de outra, em consequência de certa necessidade da qual falamos o suficiente anteriormente. Uma vez que esta necessidade está dada, as aspirações dos homens, aspirações que constituem um fator inevitável da evolução social, estão também dadas como consequência. Estas aspirações não excluem a necessidade, mas são elas mesmas determinadas por esta última. Portanto é uma grande falta de lógica opô-las a esta mesma necessidade.
Quando uma classe que aspira sua emancipação, efetua uma revolução social, age no caso de forma mais ou menos apropriada ao objetivo que persegue e, em todo caso, sua atividade é a causa desta revolução. Mas esta atividade, com todas as aspirações que a suscitaram, é ela mesma a consequência do desenvolvimento econômico e portanto ela é em si mesma determinada pela necessidade.
A sociologia só se torna ciência na medida em que chega a compreender o aparecimento de objetivos no homem social (“teleologia” social) como consequência necessária do processo social, condicionado, em última instância, pela marcha do desenvolvimento econômico.
E é muito característico que os adversários consequentes da interpretação materialista da história se vejam obrigados a demonstrar que a sociologia é impossível enquanto ciência. Isto significa que o “criticismo” se torna um obstáculo ao desenvolvimento científico de nossa época. Aqueles que procuram encontrar uma explicação científica da história das teorias filosóficas poderão empreender uma tarefa interessante: determinar a maneira pela qual o papel do “criticismo” se relaciona com a luta de classes.
Se pretendo tomar parte num movimento cujo triunfo me parece uma necessidade histórica, isto significa unicamente que considero minha própria atividade também como um elo indispensável na cadeia das condições cuja totalidade assegurará necessariamente o triunfo do movimento que me é caro. Nem mais nem menos. Isto um dualista não compreende. Mas é perfeitamente claro para quem assimilou a teoria da unidade entre o sujeito e o objeto e compreendeu de que maneira essa unidade se manifesta nos fenômenos de ordem social.
É extremamente importante notar que os teóricos do protestantismo na América do Norte não compreendem evidentemente nada desta oposição entre a liberdade e a necessidade que tanto preocupou e ainda preocupa muitos ideólogos da burguesia europeia. A. Bargy diz que “na América, os propagandistas da energia mais convictos são poucos propensos a reconhecer a liberdade da vontade”. Ele explica isto pelo fato que estes homens, enquanto homens de ação, preferem as decisões fatalistas. Mas Bargy se engana. O fatalismo nada tem com isto. O que se pode ver em sua própria observação a respeito do moralista Jonathan Edwards é o ponto de vista de Edwards, é o ponto de vista de todo homem de ação. Para quem jamais na vida se propôs um fim determinado, a liberdade é a faculdade de colocar toda a sua alma em buscar este fim”. Isto está muito bem dito e parece bastante com o “nada querer além de si mesmo” de Hegel. Mas quando o homem “nada quer além de si mesmo” ele não é absolutamente fatalista; ele é um homem de ação, exclusivamente.
O kantismo não é uma filosofia de combate, não é uma filosofia de homens de ação. É uma filosofia de pessoas que em tudo ficam a meio caminho, uma filosofia de compromisso.
Engels diz que é preciso que os meios de suprimir o mal social sejam descobertos nas condições materiais dadas da produção, mas não inventadas por este ou aquele reformador social. Stammler está de acordo com Engels neste ponto, mas o acusa de falta de clareza, visto que, segundo ele, o âmago da questão é saber “com a ajuda de qual método esta descoberta deve ser feita”. Esta objeção apenas testemunha a confusão que reina no próprio pensamento de Stammler. E ela se esvazia pelo fato muito simples que mesmo se o caráter do “método” está, em tais casos, determinado por grande número de “fatores” extremamente variados, todos estes “fatores” entretanto podem ser reconduzidos, no final de contas, à sua fonte, a saber, a marcha do desenvolvimento econômico. O próprio fato de a teoria de Marx ter podido nascer foi condicionado pelo desenvolvimento do modo de produção capitalista, enquanto a predominância do utopismo no socialismo anterior a Marx é bem compreensível numa sociedade que tenha sofrido não apenas o desenvolvimento do modo de produção indicado, mas também, talvez ainda mais, da insuficiência deste desenvolvimento .
É inútil estender-nos ainda mais sobre este assunto. Mas talvez o leitor consentirá que, ao terminar este artigo, chamemos sua atenção sobre a estreita relação entre o “método” tático de Marx e Engels e as teses fundamentais de sua teoria histórica.
Nós já sabemos que, nos termos desta teoria, a humanidade só se coloca problemas que pode resolver “pois o próprio problema só se apresenta onde as condições materiais indispensáveis à sua solução já existem ou estão em vias de aparecimento”. Mas onde as condições já existem, a situação é totalmente diferente daquela onde elas “apenas estão em vias de aparecimento”. No primeiro caso, o momento do “salto” já chegou; no segundo, o “salto” é coisa de um futuro mais ou menos distante, um “objetivo final”, cuja aproximação é preparada por toda uma série de “transformações graduais” nas relações entre as classes sociais. Qual deve ser o papel dos inovadores na época em que o “salto” ainda é impossível?
Só lhes resta contribuir para as “transformações graduais”, falando de outra maneira, a lutar para obter reformas. Assim o “objetivo final” tanto quanto as reformas encontram seu lugar; e a oposição entre a reforma e o objetivo final perde toda a razão de ser e se encontra relegado ao domínio das legendas utópicas. Qualquer que seja o homem que admita tal oposição — “revisionista” alemão, no gênero de E. Bernstein, ou “sindicalista revolucionário” italiano, do gênero daqueles que participaram do recente congresso sindicalista de Ferrara — revela na mesma medida a sua incapacidade de compreender o espírito e o método do socialismo científico moderno. Isto é útil relembrar no momento atual em que o reformismo e o sindicalismo ousam falar em nome de Marx.
Mas que robusto otimismo emana destas palavras: “A humanidade só se coloca problemas que ela pode resolver”. Evidentemente, elas não significam que toda solução dos grandes problemas apresentada pelo primeiro utopista que surja seja boa. Uma coisa é o utopismo, outra é a humanidade, ou mais exatamente falando, a classe social que representa num momento dado os interesses supremos da humanidade. O próprio Marx disse muito bem:
“Quanto mais uma ação histórica for profunda, mais crescerá a amplitude das massas que a efetuam”.
Por aí se encontra definitivamente condenada toda atitude utópica em relação aos problemas históricos. Contudo, se Marx pensava que a humanidade jamais se propõe problemas insolúveis, suas palavras, do ponto de vista teórico, representam apenas uma nova expressão da ideia da unidade entre o sujeito e o objeto aplicada ao processo do desenvolvimento histórico. Do ponto de vista prático, elas expressam a fé calma e viril de que o “objetivo final” será atingido, fé que outrora fez exclamar nosso inesquecível N. G. Tchernychevsky com calorosa convicção:
“Aconteça o que acontecer, será, apesar de tudo, o nosso campo que festejará a vitória!”
PUBLICADO EM MARXISTS.ORG