A luta pela autonomia universitária e a posição dos marxistas

Este artigo foi originalmente publicado na brochura “A luta pela educação pública, gratuita e para todos: questões do movimento estudantil”, lançada no 2º Seminário Em Defesa da Educação Pública, Gratuita e Para Todos e que encontra-se disponível, em versão PDF e Yumpu, para baixar ao final deste artigo. Você pode contribuir para que possamos seguir publicando materiais como esse e para o auto financiamento de nossa organização, doando qualquer quantia através do PIX: souliberdadeeluta@gmail.com. Temos o orgulho de anunciar que esta brochura está sendo impressa e estará nas mãos de nossos militantes e apoiadores ainda esse ano.  Boa leitura!

Com a intervenção de Bolsonaro nomeando reitores de universidades federais em 2020, um importante debate retornou à cena política estudantil, a luta pela autonomia universitária. Para algumas organizações, a autonomia universitária é vista como sendo a “livre escolha dos reitores”, através do processo de eleição. Para outras organizações, a autonomia universitária está alinhada ao fim da lista tríplice, ou seja, a escolha direta de reitores via eleição da comunidade acadêmica. O que é, afinal, autonomia universitária e qual a posição dos marxistas? Para responder a essas questões é preciso retomar a história das universidades e a luta pela autonomia universitária na América Latina. 

A história das universidades 

Na história, o tema educação sempre carregou um conflito intrínseco: de um lado, o interesse e necessidade das classes dominantes em perpetuar ideologicamente sua dominação; do outro, a marcha do desenvolvimento do pensamento, respondendo a questões de seu tempo e contestando dogmas.  

O pano de fundo da luta de classes, encontra suas particularidades em cada época. Nesse caminho, importantes avanços foram arrancados das classes dominantes, o que abriu a necessidade de ela readequar seu regime de exploração e, portanto, suas instituições de disseminação ideológica, tais como universidades, escolas etc. 

“As universidades modernas tiveram sua origem na idade média, entre os séculos 12 e 15. Neste período, foram fundadas as universidades de Oxford, Bolonha e Paris. Coimbra (Portugal) foi criada em 1290. As datas de fundação não são precisas – os documentos históricos registram datas diferentes, mas a sua instituição é sempre através do reconhecimento oficial de sua existência. Essa fundação se faz por bula papal ou por decreto imperial, que reconhece a sua independência frente aos poderes locais.” Autonomia Universitária – Esquerda Marxista

Essas universidades tinham uma certa autonomia por estarem distantes do papa ou do imperador que as fundaram, eram consideradas autônomas. Contudo, essa mesma autonomia vai gerar conflitos com as autoridades e serão palco de um debate filosófico e teológico fruto da diversa composição de sua comunidade acadêmica, afirma o texto. Além disso, esses debates servirão de base para os futuros embates da burguesia com o clero e senhores feudais. 

Nesse contexto, o desenvolvimento das forças produtivas encontrava um grave limite no engessamento anticientífico da teologia, levando a burguesia a apoiar-se em ideais iluministas, críticos e progressistas. Foi esse duro golpe no clero e nos senhores feudais que alavancou o desenvolvimento científico e cultural, que há muito era contido, bloqueado pela Igreja e seu obscurantismo religioso. As primeiras universidades cumpriram um papel importante nesse processo ao desenvolver um modelo universitário de defesa da autonomia enquanto autonomia do pensamento, produção científica e cultural. 

Para se ter uma ideia, até então nos colégios ligados a Ordem dos Jesuítas, era praticado uma coletânea de regras para a docência, chamado RatioStudiorum, baseado nas experiencias do Colégio Romano e outros colégios, através do qual o conteúdo era lido por representantes da Igreja Católica, sendo repetido pelos estudantes para memorização, sem qualquer possibilidade de contestação ou questionamento. Mesmo porque, durante séculos, questionar foi literalmente o crime que mais levou à fogueira durante a Santa Inquisição. Em outras palavras, a criação das universidades tinha o intuito de reafirmar o status quo, perpetuando a ordem de exploração entre classes.

A autonomia universitária é a grande discussão que permeia a constituição da Universidade Moderna. A ideia de liberdade de expressão trazida pela Revolução Francesa teve seu apogeu na constituição da Universidade de Berlin. É aí que Wilhelm Von Humboldt desenvolveu os fundamentos do que conhecemos hoje como Universidade.  A indissolubilidade do ensino e da pesquisa, a liberdade de cátedra e a ligação entre toda a estrutura de ensino com a universidade, a ciência e a mesmo com o desenvolvimento da indústria que acontecia. Humboldt idealizou a universidade como o ambiente em que o desenvolvimento intelectual está ligado a todas as áreas do conhecimento e inclusive ligado ao desenvolvimento de toda a sociedade, ideia muito avançada para a época. Uma concepção de que a universidade deve estar ligada às instituições científicas, culturais, como as chamadas academias da época e inclusive aos museus. 

Não é à toa que a Universidade de Berlin será um dos palcos das maiores disputas teóricas do século XIX, passaram por ali Engels, Marx, Bakunin, Schopenhauer, o poeta Heine e inúmeras outras figuras históricas. Hegel lecionou nela até o fim da vida. São as discussões realizadas aí que influenciam a constituição das universidades como conhecemos hoje, não só a Europa do século XIX e XX, mas também toda a América. 

Partindo do contexto de colonização espanhola na América Latina, as primeiras universidades surgiram já no século XVI, como a Universidade de São Marcos, em Lima (Peru) e a Universidade Nacional Autônoma do México (ambas em 1551), e mais tarde em Córdoba, na Argentina, em 1613; entre outras. Essa investida da monarquia de trazer universidades às colônias de forma “aparentemente” prematura obviamente não tinha o intuito de fazer a América Latina um novo celeiro da ciência e do avanço tecnológico. Na verdade, a criação de universidades nas colônias e seu atraso é fruto do atraso do capitalismo na coroa de Portugal e Espanha em relação as demais nações europeias. A maior parte das colônias espanholas já tinham civilizações relativamente complexas e isso demandava uma forma de dominação mais do que militar, mas ideológica. Nesse sentido, as universidades formavam os novos burocratas e pensadores da classe dominante.

Já o Reino português, que quase sempre concentrou as universidades em sua metrópole, se limitou a fundar no Brasil escolas profissionalizantes para capacitação de trabalho e pequenos postos administrativos. As primeiras universidades surgiram apenas no século XX, em 1920, pelo decreto 14.343, que reuniu unidades de ensino superior já existentes, dando efetivamente ao conjunto o título de “universidade” à assim formada Universidade do Rio de Janeiro, depois pela Universidade de Minas Gerais, em 1927, e pela Universidade de São Paulo, em 1937. Tiveram um importante papel na criação de universidades por aqui as revoltas universitárias como a de Córdoba, na Argentina em 1918, assim como a Revolução Russa de 1917, que fez avançar muito as universidades e o desenvolvimento científico a partir da planificação da economia, inclusive em termos da corrida espacial, por exemplo.

O Manifesto de Córdoba

A Universidade de Córdoba, na Argentina, foi fundada em 1621 e, segundo o professor José Alves de Freitas Neto, ela preservava ainda no início do século XX algumas das características do período colonial. A ligação com os jesuítas e a resistência a mudanças de procedimentos durante o período das lutas pela independência fez com que o conservadorismo fosse uma das marcas principais da Universidade e da cidade.” A reforma universitária de Córdoba (1918): um manifesto

Todo o contexto anterior a reforma de 1918 foi de intensa luta de classes na Argentina. A classe operária começava a se organizar de maneira independente, criando seus partidos e centrais sindicais. Em 1896, os trabalhadores argentinos criam seu primeiro partido: o Partido Socialista; e em 1901 sua primeira central sindical: a Federación Obrera Regional Argentina (FORA), ambas organizações que protagonizaram importantes greves e lutas. Em Córdoba, o movimento socialista se enfrentava principalmente com a Igreja, bem como os estudantes e professores que expressavam inquietações quanto as intromissões da Igreja e do clero nas atividades acadêmicas. A cidade, profundamente atrasada em relação aos processos de independência de 1810, permanecia, mais de um século depois, dominada pela Igreja. Até então, a Universidade de Córdoba permanecia como um claustro. Diante disso, estudantes de Medicina realizaram um protesto contra o fechamento do internato, o que os colocou em choque com a administração da universidade, que alegava falta de recursos e questões “morais”. 

Na Faculdade de Engenharia, por ordem dos catedráticos, aumentaram as exigências para que os alunos pudessem assistir às aulas, restringindo a presença de jovens de classe média. A proposta de mudança no sistema de cátedras reuniu os estudantes das três faculdades existentes: Medicina, Engenharia e Direito. Sem serem atendidos, iniciaram uma greve geral no dia 31 de março e lançaram um manifesto à juventude argentina.”

Foi nesse contexto que, em 1918, o movimento estudantil de Córdoba, na Argentina, exigiu mudanças estruturais através de um manifesto lançado no jornal “La Gaceta Universitária”, cujo título “La juventud argentina de Córdoba a loshombres libres de Sud America” ficou mais conhecido como Manifesto de Córdoba.

“Fueron los estudiantes de la Universidad Nacional de Córdoba quienes iniciaron el movimiento reformador que más tarde se extendió por todo el país, y pocos años después a gran parte de América Latina. Los estudiantes cordobeses proclamaron el “Manifiesto de Córdoba”, cuyos postulados básicos eran: 

1.El cogobierno de profesores y estudiantes. 

2. La autonomía política, docente y administrativa de la universidad. 

3. La elección de los dirigentes de la universidad por asambleas de profesores, estudiantes y egresados. 

4. El fortalecimiento de la función social de la universidad. 

5. La gratuidad de la enseñanza y ayuda social a los estudiantes. 

6. La elección de profesores por medio de concursos públicos y la supresión de su autoridad incuestionable. 

7. La renovación periódica de los nombramientos a los profesores. 

8. La asistencia libre a clases. 

9. La libertad de cátedra. 

10. La inclusión de estudios humanísticos y de problemas sociales en los planes de estudio de las carreras profesionales.”

Una alternativa socialista a la crisis de la universidad – Corriente Marxista Militante

A autonomia universitária no Manifesto de Córdoba foi postulada como sendo a autonomia política, docente e administrativa da universidade. Uma confronto direto com as mãos do clero e com o Estado. Além disso, entre seus postulados, havia também a eleição de dirigentes da universidade por meio de assembleais de professores, estudantes e graduados, o co-governo entre estudantes e professores para administrar a universidade e a liberdade de cátedra, isto é, a liberdade de aprender e ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber. Esses postulados entravam em confronto direto com a nomeação de dirigentes, até então realizada pela Igreja ou pelo Estado, e reivindicavam o controle administrativo da universidade e o livre debate e produção de pensamento, arte e do saber.  

Na época, a cidade de Córdoba era conhecida pela “resistência em acompanhar o fluxo da história”, considerando que há muito tempo já corriam pelo mundo os ideais iluministas das revoluções burguesas, o que fundamenta os adjetivos “anacrônica” e “retrógada”, usados no manifesto.

Pelo fato desse atraso ter deixado a universidade incompatível com as demandas tanto da classe trabalhadora quanto da classe dominante, o movimento foi até apoiado pelo então presidente Hipólito Yrigoyen, seguindo os “ventos da democracia”, que haviam levado o sufrágio universal à Argentina seis anos antes.

“Los cambios más significativos que introdujo la Reforma de 1918 fueron: la modernización de la enseñanza y los planes de estudio, arrinconando el modo de enseñanza dogmática, clerical, autoritaria y conservadora; la participación de los estudiantes en el gobierno universitario (cogobierno), si bien con una presencia minoritaria en el mismo; la Autonomía Universitaria; el ingreso irrestricto; el acceso a los cargos docentes por concurso público y por un período establecido; y el reconocimiento de los centros de estudiantes elegidos democráticamente. Fue, en medio de las movilizaciones estudiantiles de aquellos años que se fundaron la Federación Universitaria Argentina (FUA) y la Federación Universitaria de Buenos Aires (FUBA). Además de la introducción del cogobierno estudiantil, la innovación más destacada de la Reforma fue la implantación de la Autonomía, que daba a las universidades plena potestad normativa para dictar sus propios estatutos y reglamentos, para organizar sus estudios (aprobar planes y programas, crear carreras), para disponer y administrar sus bienes y rentas, y para organizar sus servicios, nombrar y remover a su personal docente y administrativo.”  Una alternativa socialista a la crisis de la universidad – Corriente Marxista Militante

Universidade Humboldt de Berlim Fonte: PIXABAY

O movimento estudantil contestou a burocracia e o engessamento da universidade, herdeira da Santa Inquisição, exigindo uma série de reivindicações, dentre as quais: autonomia universitária, a participação dos estudantes nas decisões pedagógicas e administrativas da universidade, admissão do corpo docente por concursos periódicos, liberdade de cátedra, a extensão, o vínculo operário-estudantil, entre outros. Tratava-se, portanto, de um repúdio ao modelo autoritário, antidemocrático e já obsoleto na gestão da universidade.

Um ponto interessante é que, na mesma época, se encerrava a I Guerra Mundial, bem como acontecia a Revolução Russa, justamente contra um regime czarista de um país semifeudal. Se a Revolução Francesa desbancou a monarquia com seus ideais de democracia, o que se observava nessa época era, além dos resquícios do feudalismo a serem varridos, o próprio sistema capitalista já tropeçando em suas crises transfiguradas em miséria, retrocesso e guerras, uma combinação de sintomas.

Por isso, as demandas democráticas se misturavam com demandas sociais e isso se espalhou por toda América Latina, o que deixou a burguesia em alerta. O desafio posto para a burguesia era fazer um corte limpo, podando esse caráter arcaico, limitando-se a garantir a democracia nos limites da democracia burguesa, com todos os vícios que ela carrega. Mas, apesar da cautela, as conquistas extrapolaram o contexto isolado da universidade e trouxeram à tona, além de reivindicações democráticas, discussões importantes sobre a função social da universidade, não só em Córdoba como em toda a Argentina e na América Latina.

A noção de pesquisa e extensão (ou seja, não apenas de ensino) tentou, ainda que de forma idealista, puxar o tema educação a serviço da sociedade, em oposição ao modelo das escolas e faculdades isoladas, que tinha como função apenas a promoção social do indivíduo e manutenção da divisão social em classes.

“A experiência dos estudantes de Córdoba contra a interferência do clero e dos setores mais reacionários implicava a defesa do princípio da autonomia, que em outros países, e por diversas vezes ao longo dos anos seguintes, foi utilizada contra as pressões governamentais. A defesa da autonomia foi parte das declarações de movimentos estudantis que se seguiram ao Manifesto de 21 de junho de 1918 em vários países, como México, Uruguai, Chile, Brasil e Peru.”

A reforma universitária de Córdoba (1918): um manifesto

A autonomia universitária no Brasil 

Escola de Cirurgia da Bahia, em Salvador

Durante o Império, a oferta do ensino superior no Brasil foi centralizada pelo governo, sem supervisão e com baixo investimento público, mas com autonomia docente no interior das faculdades. Após a Proclamação da República, a primeira lei que concedeu autonomia didática e administrativa aos institutos federais de ensino superior é de 1911 e antecedeu a própria criação de universidades no País. Até a edição da atual Constituição de 1988 – que prevê a autonomia universitária em seu art. 207, cinco Constituições (1891, 1934, 1937, 1946, 1967), uma Emenda Constitucional (EC no. 1/69), seis reformas do ensino superior e diversos decretos federais definiram e regulamentaram a autonomia universitária. Nesse período, a participação da comunidade acadêmica na eleição de dirigentes foi suprimida entre 1915 e 1961, salvo no caso da Universidade de São Paulo, criada em 1934 em regime menos rígido que o das universidades federais, submetidas, à época, ao Estatuto das Universidades Brasileiras de 1930. A edição da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1961 modificou o panorama com a previsão de autonomia didática, administrativa, financeira e disciplinar (art. 80), incluindo a elaboração de listas tríplices para escolha de reitor, o que foi mantido durante o governo militar na forma da Lei 5.540/68.”

Temos acima um breve histórico das modificações em torno da autonomia universitária no Brasil, contudo, a concepção de autonomia presente nesse trecho está restrita a eleição de dirigentes da universidades, isto é, de reitores. Vemos também que foi apenas em 1968, com as grandes mobilizações no mundo e no ano da unidade internacional da luta de classes e, no contexto, da passeata dos 100 mil no Brasil contra a ditadura, que ocorre uma reforma universitária a contragosto da ditadura, fruto da pressão internacional e nacional da luta de classes. 

Segundo Carlos Benedito Martins, autor do artigo “A reforma universitária de 1968 e a abertura para o ensino superior privado no Brasil”: 

“A Reforma de 1968 produziu efeitos paradoxais no ensino superior brasileiro. Por um lado, modernizou uma parte significativa das universidades federais e determinadas instituições estaduais e confessionais, que incorporaram gradualmente as modificações acadêmicas propostas pela Reforma. Criaram-se condições propícias para que determinadas instituições passassem a articular as atividades de ensino e de pesquisa, que até então – salvo raras exceções – estavam relativamente desconectadas. Aboliram-se as cátedras vitalícias, introduziu-se o regime departamental, institucionalizou-se a carreira acadêmica, a legislação pertinente acoplou o ingresso e a progressão docente à titulação acadêmica. Para atender a esse dispositivo, criou-se uma política nacional de pós-graduação, expressa nos planos nacionais de pós-graduação e conduzida de forma eficiente pelas agências de fomento do governo federal. Nos últimos 35 anos, a pós-graduação tornou-se um instrumento fundamental da renovação do ensino superior no país. Sua implantação impulsionou posteriormente um vigoroso programa de iniciação científica, que tem contribuído para articular pesquisa e ensino de graduação e impulsionado a formação de novas gerações de pesquisadores).”

Ao mesmo tempo que essa reforma deu condições para a ampliação das universidades e das vagas ofertadas, o mesmo autor confirma que elas foram insuficientes para a demanda crescente de novas vagas e que isso abriu margem para a expansão do setor privado na educação. 

A eleição de dirigentes foi suprimida nas universidades brasileiras entre 1915 e 1961. A LDB de 1961 incluiu no conceito da autonomia universitária os conceitos de autonomia didática, financeira, administrativa e disciplinar e a Ditadura Militar insere um novo padrão para as eleições de dirigentes, a implantação da lista tríplice com a Lei nº5.540/68, que torna o processo de eleição, na verdade, uma mera consulta à comunidade.  A inclusão da autonomia financeira pela LDB é a base para a criação de fundos na educação, uma forma de limitar os recursos e não ampliá-los, além de permitir a participação da iniciativa privada na educação pública. 

Nos anos 80, com o desgaste da política econômica dos militares, com a rearticulação dos movimentos operários e estudantis, a burguesia se movimentou para uma “redemocratização”, enxergando que o regime militar apresentava cada vez menos condições de mantê-la em sua posição parasitária. Assim surgiu a nova Constituinte, onde há um artigo que diz: 

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.”

Na Constituição de 1988 há diversas contradições que se expressam no debate da autonomia universitária. Em primeiro, ela afirma que a educação pública, gratuita e para todos é um direito de todo cidadão, ao mesmo tempo que permite a participação do setor privado na educação. No debate da autonomia, a inclusão da autonomia de gestão financeira é um engodo que dá abertura às universidades públicas buscarem financiamento junto a entidades privadas e permite a participação das entidades privadas na gestão financeira das universidades. 

Ao mesmo tempo, no decreto nº1.916, de 23/05/1995, que regulamenta o processo de escolha dos dirigentes de ensino de instituições federais de ensino superior, através de lista tríplice, diz em seu inciso primeiro: “Reitor e o Vice-Reitor de universidade mantida pela União, qualquer que seja a sua forma de constituição, serão nomeados pelo Presidente da República, escolhidos dentre os indicados em listas tríplices elaboradas pelo colegiado máximo da instituição, ou por outro colegiado que o englobe, instituído especificamente para este fim.” 

A Lei de Diretrizes e Bases da educação, de 1996 (FHC), manteve o mesmo campo aberto à iniciativa privada que a LDB de 1961 havia definido, e seguindo à risca a agenda do capitalismo (medidas do FMI e Banco Mundial para manter os países sob domínio do setor financeiro norte americano por meio de dívidas). 

E, para reforçar a adaptação, criou-se, através do Decreto 2.306/97, os Centros Universitários e os Institutos Superiores de Educação para uma educação ainda mais fragmentada sob o argumento de que “o específico é enxuto e gasta menos da máquina pública”. Esses centros e institutos se desvinculam do conceito de universidade e são a brecha que o setor privado cunhou através das leis para florescer durante os anos 90.

Vale lembrar que os governos Lula e Dilma nada fizeram para alterar essa realidade. Mantiveram a política de transferência de dinheiro público para o ensino pagopor meio dos programas como PROUNI e FIES, sustentando o desenvolvimento dos tubarões do ensino. A questão da autonomia universitária no governo Lula é muito bem explicada no artigo de Celina Regina Otranto:

“A “garantia” de autonomia universitária está presente em todos os documentos que fundamentam a proposta do governo Lula da Silva. No Relatório do Grupo de Trabalho Interministerial há uma relação explícita entre a crise que assola as universidades públicas e as “amarras legais que impedem cada universidade de captar e administrar recursos, definir prioridades e estruturas de gastos e planejamento” (p. 9). Por esse motivo, segundo o relatório, “a imediata garantia de autonomia às universidades é um passo necessário para enfrentar a emergência” (id.). O discurso sedutor parece, no primeiro olhar, que vai ao encontro dos anseios das comunidades universitárias, porém, no decorrer da leitura do relatório, percebe-se que a autonomia por ele proposta tem como enfoque principal a autonomia financeira, ou seja, a liberação da universidade para captar recursos no mercado, sem amarras legais. Isso daria um enorme alívio financeiro ao Estado que seria obrigado, somente, a complementar esses recursos e não mais teria, como tem hoje, a obrigação de manter financeiramente as universidades públicas. A inspiração dessa “autonomia financeira” do Grupo Interministerial do governo Lula da Silva veio, como as demais, dos documentos do Banco Mundial (BM). Tomando como referência o documento de 1994, podemos ver que o BM considera a educação superior no Brasil um campo extremamente privilegiado devido aos subsídios governamentais a ela destinados, e propõe uma ampla reforma.”

Uma série de decretos são realizados com esse sentido, possibilitando a expansão do ensino privado, tal como a implantação do FIES, do PROUNI, parcerias entre laboratórios e universidades, etc. 

Em 24/12/2019, uma nova Medida Provisória (914) editada pelo governo Bolsonaro revogou a lei nº 9192 de 21/12/1995, alterando a forma de eleição dos dirigentes de universidades, dando mais possibilidades ao presidente de não acatar o resultado da lista tríplice. Essa medida se conecta com a tentativa, por parte do governo Bolsonaro, de nomear reitores mais alinhados com seus posicionamentos ideológicos na aplicação do orçamento das universidades. Além disso, a MP alterou a lei de 1995 em relação ao peso dado aos docentes nas consultas, aumentando de 60% para 70%, notadamente, uma forma de, ao nomear reitores, fazer com que os professores alinhados aos reitores nomeados tivessem mais peso nas decisões da universidade. Um ataque aos estudantes, que tem representado a linha de frente do enfrentando aos cortes nas universidades públicas do país. A MP, no entanto, perdeu eficácia.

Assim chegamos ao período atual, em que o debate sobre o conceito de autonomia universitária, que originalmente partiu da liberdade de pensamento científico, artístico e político e da autonomia pedagógica, sob controle dos estudantes, professores e funcionários, se restringiu na disputa sobre eleição dos reitores e a “autonomia financeira”, isto é, na autonomia de captar recursos com a inciativa privada. 

O reitor e a universidade capitalista

O reitor na universidade capitalista tem a função de garantir a aplicação e gerência de um orçamento dado, seja nas universidades públicas ou nas privadas. Ele não representa os interesses da comunidade frente às mantenedoras (instituições de caráter público ou privado, com ou sem fins lucrativos, que são responsáveis pelas universidades), mas age em conjunto com estas, controlando os rumos do tripé ensino-pesquisa-extensão de acordo com os interesses das mantenedoras. Nas universidades privadas é mais fácil de visualizar esse caráter, uma vez que na maior parte delas o reitor é nomeado diretamente pelos donos das mantenedoras. 

Nas universidades públicas, onde a existe uma tradição mais organizada do movimento estudantil, a luta por autonomia universitária foi “resolvida” pelo Estado burguês, na Reforma Universitária da Ditadura Militar, pela eleição de reitores em lista tríplice, uma forma de manter o controle do orçamento por meio desses dirigentes. A comunidade vota e é formada uma lista com os três mais votados, mas a nomeação continua garantida ao poder do Estado, ou seja, nada mais do que um processo de consulta à comunidade. 

No caso das universidades pontifícias, como é o caso da PUC, foi dado um exemplo claro de como a lista tríplice é insuficiente. Em 2012, houve eleições para reitor e a professora Ana Maria Marques Cintra foi nomeada pelo Grão-Chanceler, Dom Odilo Pedro Scherer, como reitora da PUC-SP, a despeito de ter sido a terceira colocada na lista. A nomeação desencadeou um movimento de greve com ocupação da reitoria, a greve chegou a ser considerada abusiva pelo Tribunal Superior do Trabalho. Mas infelizmente, estudantes, professores e funcionários tiveram que continuar sob um mandato de quatro anos de Ana Cintra, que retirou diversas conquistas, como, por exemplo, o bandejão estendido a todos os estudantes. 

Manifestação de estudantes da PUCSP contra a nomeação de Ana Cintra

O Grão-Chanceler funciona como o presidente nas universidades federais para a nomeação de reitores nas pontificas e esse exemplo emblemático da PUC-SP mostra como a lista tríplice é praticamente um teatro de bonecos, onde aqueles que votam não tem realmente o poder de escolha, quanto mais de decisão sobre os rumos da universidade. 

Outro exemplo: o projeto “Future-se” de Bolsonaro. Os reitores que disseram não ao projeto, assim como os que disseram sim, terão de captar recursos junto a iniciativa privada para manter ou recompor o orçamento da universidade. Ainda que possam ter um posicionamento contra a privatização e sucateamento da universidade pública, são obrigados a aplicar a medida devido à falta de recursos; ou nenhuma influência vão ter a partir do momento da captação, uma vez que quem vai gerir os fundos é a OS responsável pela captação dos recursos; ou ver a universidade sendo destruída em plena sua gestão sem recursos; ou então renunciar para não se abster de seus princípios. Nada mudará para os rumos da educação, no entanto. 

O processo de eleição, na verdade, uma consulta à comunidade, tem como objetivo legitimar o carrasco que vai aplicar um dado orçamento, já decidido pela mantenedora, seja ela pública ou privada, tendo a legitimidade da eleição (leia-se, consulta) a seu favor, o controle e a imposição de projetos que atendam ao interesse do imperialismo. O reitorado é, portanto, um agente da burguesia, é um interventor do Estado burguês e das Igrejas nas universidades. 

Democracia universitária e autonomia universitária

Dessa maneira, para um funcionamento realmente democrático no ambiente universitário, erguemos não só a bandeira do fim da lista tríplice, mas também a da paridade nos órgãos colegiados, assembleias por categoria/cursos/turnos e assembleias gerais para o debate, organização e definição dos rumos que a comunidade quer para a universidade e de suas representações. Isso é o mínimo para começarmos a falar de democracia universitária.  

Mas mesmo essas bandeiras são insuficientes para se falar de uma verdadeira autonomia universitária. As eleições diretas para reitor ou mesmo o fim do reitorado com órgãos colegiados não resolvem o problema sobre quem controla o orçamento da educação e das universidades, mesmo escolhendo democraticamente ou eliminando os dirigentes de ensino, sejam reitores ou diretores da estrutura administrativa das escolas, a função que cumprem não desaparece do mapa. Essa função e sua execução podem continuar sendo aplicadas pelo órgão colegiado eleito com paridade, e o controle da produção científica e dos rumos da universidade continua sendo ditado pelo capital, só que com uma aparência democrática. 

A autonomia universitária é compreendida pelos marxistas como a autonomia de pensamento, de produção de pensamento científico, político e artístico no interior da universidade. É a liberdade de aprender e ensinar, pesquisar e divulgar o conhecimento. Aqui entram bandeiras como a defesa das liberdades democráticas (expressão, manifestação e organização) de professores, estudantes e técnico-administrativos e a liberdade de cátedra. A luta pela autonomia universitária não inclui a responsabilidade da comunidade acadêmica (professores, estudantes, funcionários) na gestão ou administração do orçamento da universidade. Como vimos no Manifesto de Córdoba, não havia a inclusão de uma autonomia financeira, isso porque defendemos a educação pública e, portanto, as universidades são dependentes financeiramente do Estado. Ao mesmo tempo, o reconhecimento de que elas são dependentes financeiramente do Estado tem, por outro lado, o reconhecimento de que este Estado a serviço da burguesia estrangula o orçamento das universidades e, portanto, devemos lutar por todo dinheiro necessário na educação e ciência e contra qualquer corte.  

Se, por um lado, defendemos a autonomia universitária, por outro, também defendemos uma universidade para os interesses da classe trabalhadora e da humanidade, que não está dissociado da luta pela educação pública, gratuita e para todos e a federalização das universidades que recebem dinheiro público, o fim do vestibular, vagas para todos nas universidades públicas e todo dinheiro necessário para a educação e ciência públicas. 

Ao mesmo tempo que nós apoiamos nas formulações gerais como “liberdades democráticas” e “autonomia universitária”, não podemos esquecer de fazer mais preciso seu caráter de classe, preenchendo essas formulações gerais com o caráter da classe operária e demarcando muito claramente os interesses gerais e imediatos dos trabalhadores. Foi assim que Lênin colocou a questão sobre a democracia operária contra a defesa da “democracia em geral”, no primeiro congresso da Internacional Comunista. 

“1 – O crescimento do movimento revolucionários proletário em todos os países suscita os esforços convulsivos da burguesia e dos agentes que ela possui nas organizações operárias para descobrir os argumentos filosófico-políticos capazes de servir à defesa da dominação dos exploradores. A condenação da ditadura e a defesa da democracia figuram entre esses argumentos. (…) 2 – Em primeiro lugar, este argumento se apoia nas concepções de democracia geral” e de “ditadura em geral”, sem precisar a questão da classe. Colocar assim o problema, fora da questão das classes, pretendendo considerar o conjunto da nação, é zombar da doutrina fundamental do socialismo, a saber a doutrina da luta de classes, aceita nas palavras, mas esquecida na prática pelos socialistas que passaram para o campo da burguesia. (…)” –

Teses sobre Democracia – Lenin

Nossa posição e tarefas

Tomada da Faculdade de Direito da Universidad de Córdoba. Foto: Arquivo/UNC

Nesse sentido, não participamos das eleições para reitores, explicando sua função de legitimar os carrascos que aplicarão o orçamento do Estado burguês ou da burguesia diretamente, que não são representantes da comunidade, mas representantes do interesse das mantenedoras que, pública ou privada, atendem aos interesses da burguesia na educação. Como contraposição positiva, apresentamos a defesa do caráter público gratuito e estendido a todos da educação, portanto, a estatização das universidades privadas que recebem dinheiro público, o fim do vestibular e todo dinheiro necessário para a educação e ciência públicas, sob controle dos que estudam e trabalham, de acordo com um plano geral da economia organizado por um governo socialista dos trabalhadores. 

Enquanto o orçamento é definido por gestores a serviço do capital, a escolha dos dirigentes de ensino ou reitores somente nomeará com ou sem legitimidade o carrasco que irá aplicar interesses alheios aos da comunidade acadêmica e das necessidades dos trabalhadores que a universidade pode prover. Nesse caso, a autonomia universitária ganha a forma de uma a luta pela ampliação dos orçamentos de ensino, pesquisa e extensão a nível local e nacional.

Nas universidades públicas – estaduais ou federais – onde existe esse tipo de tradição de lista tríplice, não participamos das eleições, boicotamos abertamente essas eleições e nos utilizamos do processo para discutir com os estudantes nossas posições, debatendo com os estudantes as insuficiências programáticas dos candidatos frente a um orçamento para a educação sucateado e cortado, mostramos como esses reitores, por mais progressistas que possam ser individualmente, enquanto reitores, terão de prestar contas aos governos a serviço do capital e a aplicar ataques para atender a esses interesses, discutimos a importância da organização dos estudantes e trabalhadores para fazer frente a esses ataques e como podemos ter uma universidade pública, gratuita e para todos sob o controle dos que nela estudam e trabalham com a finalidade de atender os interesses da humanidade e não do lucro. 

No caso das universidades particulares, onde sequer existe a tradição de eleições diretas ou lista tríplice, nossa demanda não é para que se estabeleçam listas tríplices ou entrar em campanha para ter eleição para reitores. Nesses espaços, nossas mobilizações precisam ser os primeiros passos da organização dos estudantes, mobilizando em torno de cada demanda concreta e imediata para agrupar estudantes e impulsioná-los na construção de suas próprias entidades. A cada nomeação de reitores, explicitar o caráter autoritário das mantenedoras privadas, dos lucros serem o prejuízo dos estudantes, da necessidade de federalização das universidades privadas que recebem dinheiro público sob controle dos que estudam e trabalham e da luta em conexão com as demais universidades públicas pela educação pública, gratuita e para todos. 

A defesa da autonomia universitária sob o capitalismo se concentra na liberdade de pensamento, as liberdades democráticas, produção científica e artística nas universidades; na autonomia pedagógico- científica e na liberdade de cátedra. Mas, por sua própria definição, ela é uma das tarefas democráticas que a burguesia, no estágio imperialista do capitalismo e em um país dominado pelo imperialismo, é incapaz de cumprir. Por isso, combatemos a ilusão de que ela pode ser alcançada plenamente mesmo na república mais democrática da burguesia, dado que também o próprio capitalismo se encontra em um fase de declínio e degeneração onde o mesmo bloqueia o desenvolvimento das forças produtivas, entre elas, a ciência. 

A autonomia universitária é, portanto, uma tarefa que será cumprida plenamente pela revolução socialista, encabeçada pelos trabalhadores. Dissociá-la da transformação socialista da sociedade e defendê-la em si mesma não interessa aos comunistas. Nossa luta é pela emancipação total da humanidade da exploração de classe, onde todos os seres humanos possam ter liberdade total de pensamento, criação artística e produção científica em benefício da libertação do conjunto da humanidade, de nossa passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade. 

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